Um sinal da transição acelerada para uma ordem mundial multipolar está na multiplicação de conflitos periféricos que se juntam aos principais. E além dos conflitos e da sua dimensão existe outra característica, também singular: o facto de haver protagonistas internacionais – Estados, movimentos políticos e político-militares – que tomam iniciativas e estabelecem alianças contraditórias, numa geometria variável que parece incontrolada.  E que podem ser, também eles, agentes incontrolados.

Assim, o Hamas – o movimento radical sunita que estava dado como moribundo, ineficaz, descartável, não só pelos serviços de inteligência de Israel, mas por outros serviços médio-orientais – lançou bruscamente o mais mortífero dos ataques contra o “lar judaico” na Terra Santa; um ataque que, além das perdas e da humilhação da surpresa, colocou o governo de Telavive perante a alternativa diabólica de ripostar em força – com o risco dos previsíveis excessos. O caso do hospital al-Ahli Arab passou por ter sido um desses excessos ou desastres de guerra, cujo odioso, com razão ou sem ela, caiu sobre Telavive. E imediatamente desencadeou o levantamento da “rua árabe” e o congelamento da reunião dos “moderados” da região com Biden – Mahmoud Abbas, da Autoridade Palestiniana, Abd al-Fatah al-Sisi, presidente do Egipto, e o rei da Jordânia, Abdullah II. Perante a tensão levantada pelas notícias da bomba ou míssil no hospital, tudo parou.

Saudades da Guerra Fria?

É um novo mundo, ou uma nova ordem no mundo. A Guerra Fria, com o seu bilateralismo bem oleado, alternava as suas fases mais tensas com a tranquilidade da détente, e havia uma certa segurança, transmitida pelos políticos americanos, como Eisenhower, Nixon, Kennedy e Johnson, e pelos burocratas que sucederam a Staline, como Kruschev ou Breznev, gente que ninguém via a correr riscos apocalípticos ou precipitados, num tempo de telefones vermelhos e conversas paralelas, longe do público.

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Esse tempo acabou. Embora vejamos tendencialmente ordem num passado que acabou e caos no presente que ainda corre, não podemos deixar de observar o fim de um mundo relativamente ordeiro, porque dominado por duas grandes potências que se vigiavam, equilibravam e controlavam os respectivos campos. Em vez desse mundo bipolar à volta de dois duelistas principais, encabeçando o campo socialista e o campo capitalista, o campo totalitário e o campo liberal, e mantendo a disciplina dos seus apoiantes e clientes, temos agora uma multiplicidade de protagonistas. Protagonistas que são potências político-militares várias, com capacidade de decisão autónoma, com agendas, ora paralelas ora conflituantes, num panorama geopolítico onde se alinham as maiores, como os Estados Unidos, a China, a Índia, todas nucleares, mas disputado por outras – a Rússia, o Paquistão, a Turquia, Israel, a Arábia Saudita; e também o Brasil, a Indonésia, o Japão, e os Estados europeus, a França, o Reino Unido, a Alemanha.

Na confusão

À volta destes Estados principais, agrupam-se as suas clientelas político-militares, culturais, económicas. Já não há alinhamentos ideológicos, a não ser alguns restos nostálgicos da Guerra Fria – como a descrição do Presidente americano das tensões com a Rússia como uma cruzada das democracias contra os “iliberais” ou autoritários, esquecendo talvez que nessa categoria caberia quase todo o Sul Global, a África, o Médio Oriente, e até a América Hispânica, democrática, mas neutralista. E haverá também desenquadrados e tecnologias de destruição maciça à solta.

É por isso que este tempo de transição é um tempo perigoso, com focos de guerra principais mais ou menos consolidados na Europa Oriental e no Médio-Oriente. Só que, aproveitando o empenho e a concentração dos países importantes no conflito principal, NATO-Rússia, os azeris avançaram para resolver a disputa da Nagorno-Karabakh com a Arménia; e, em África, multiplicam-se os golpes militares.

Terá sido o ataque do Hamas sunita inspirado pelos ayatohlas do Teerão shiita? Fará sentido semelhante ruptura num momento em que iranianos e sauditas pareciam em lua de mel nos BRICS, depois de uma inesperada e celebrada reconciliação impulsionada pelos chineses?

Um dos danos colaterais do ataque do Hamas é o fim das aproximações políticas de alguns destes Estados terrivelmente desavindos, que, depois de surpreendentes esforços, como os Acordos de Abraão, podem agora ter de retroceder. A aproximação Arábia Saudita-Israel, provocada pelo “inimigo principal”, o Irão dos ayatohlas, será um deles, já que o todo poderoso Príncipe Herdeiro Saudita, Mohammed bin-Salman, é suficientemente avisado para, no momento em que no mundo árabe soa a hora de solidariedade anti-Telavive, refrear as suas aberturas a Israel.

Além da Arábia Saudita, também a Turquia vai ter problemas na sua recente política de entendimento e negociação com Israel. O líder turco Erdogan é outro político experimentado e prudente, que tem combinado autoritarismo e popularidade e trazido ao seu país uma modernização acelerada. Ora, depois do encontro com Netanyahu, em Nova Iorque, em Setembro, Erdogan estava empenhado num diálogo próximo e muito aberto com Telavive. Diálogo que terá agora de interromper.

Compreende-se que o líder de um país de maioria absoluta muçulmana, que quer fazer da Turquia um farol otomano numa região perturbada por políticas de confronto, reaja mal quando o Secretário de Estado americano, Anthony Blinken, invoca a sua ascendência judaica para justificar as generosas dádivas de Washington a Israel. Que poderia Erdogan fazer senão reagir a esta alusão identitária de um alto representante de uma super-potência em negociações trans-estatais?  Se Blinken estava ali “como judeu”, ele, Erdogan, líder da Turquia, país de religião muçulmana, estaria ali “como muçulmano”.

Curiosamente, os dois Estados, Israel e Turquia, pertencem ao número de protagonistas internacionais que, recentemente, tinham intervindo em vários conflitos de forma nem sempre alinhada religiosa e culturalmente e, por vezes, até aparentemente contraditória.

Os moderadores

O ataque do Hamas, além de ter posto fim ao diálogo de Riade e Ankara com Telavive, desencadeou também uma profusão de diligências externas, quer para reparar os destroços e reconfortar Israel, quer para moderar Telavive, com vista a impedir uma vindicta de proporções bíblicas.

Neste aspecto, foi pouco feliz a visita a Israel da Presidente da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, considerada intrusiva e abusiva pelo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell.  Borrell, não só criticou o apoio unilateral de von der Leyen a Israel, sem ressalvar a necessidade de moderação na resposta armada em nome dos civis de Gaza, como lembrou à Presidente que não era ela quem decidia a política externa da União Europeia, mas os Estados membros – e na presença e sob a orientação dele, Josep, e não dela, Úrsula.  Até porque, na União Europeia, vigora a regra da unanimidade e, como se tem visto com os “grandes”, a Inglaterra, a França e a Alemanha, os Estados funcionam como Estados e tomam as suas próprias iniciativas moderadoras.

Biden, que também se deslocou expressamente a Israel, exprimiu claramente a solidariedade dos Estados Unidos, mas foi também cauteloso, pedindo a Telavive prudência e moderação na resposta. Muito americanamente, achou por bem penitenciar-se pelos excessos cometidos por Washington nas represálias ao 11 de Setembro, antes de aconselhar Netanyahu a não ocupar Gaza (“um grande erro”, tendo em conta que a imensa maioria dos habitantes de Gaza não tinha culpa do terrorismo do Hamas) e de lhe pedir que adiasse a operação terrestre, lembrando-lhe ainda a necessidade de repor na Agenda a solução dos dois Estados.

Compreensivelmente, a grande preocupação de Washington parece ser a de evitar o alastrar da guerra na região, com um possível ataque do Hezbollah a Israel a partir do Líbano e uma entrada da Liga Árabe no conflito.

Solicitados em duas frentes muito quentes, os norte-americanos não têm outro remédio senão recorrer ao rival chinês, que se vai desenhando como candidato a guia do “Sul global” e que, evidentemente, também não quer um conflito generalizado no Médio Oriente. Ainda que possa ter interesse saber se Teerão teve alguma influência no ataque do Hamas, ninguém vai querer tirar daí consequências punitivas. De resto, Blinken já solicitou os bons ofícios e a influência de Pequim junto dos dirigentes iranianos e Pequim já respondeu com o apelo a um cessar-fogo.

Isto apesar do formalismo da votação no Conselho de Segurança ao apelo chinês – que lembrou as votações do tempo da Guerra Fria, com os membros permanentes divididos (EUA, Reino Unido e França, de um lado; Rússia e China do outro) – e do veto americano à resolução brasileira de criar um corredor humanitário, resolução que deixou Washington sozinho, contra “o resto mundo”, Japão e França incluídos.

Contradições mais que naturais numa ordem internacional fragmentada em termos de ideias, valores e interesses; uma ordem organizada num agrupamento que, por vezes, se julga uma comunidade de nações, mas que é apenas uma sociedade.

Por cotas e de responsabilidade limitada.