O Governo anunciou, recentemente, 48 medidas no Simplex 2022 para a modernização administrativa, entre elas o acesso a exames de saúde de forma digitalizada. Trata-se de uma medida – como todas neste programa, aliás – que vem cheia de uma grande bondade, mas que pode, de facto, revelar-se numa medida com grande impacto e riscos associados.
O secretário de Estado da Digitalização fez uma apresentação impactante sobre estas novas medidas, sublinhando que as da área da saúde seriam aquelas que poderiam ter maior repercussão, talvez porque a saúde ficou na agenda política, seja desde os últimos episódios de falta de recursos humanos e o encerramento de várias urgências nos hospitais, seja pelas constantes notícias de demissão em bloco de vários médicos a que temos assistido no nosso país. Porém, quando abrimos o website do Simplex lemos sobre a medida que fala da digitalização de exames de saúde e diz apenas que se trata de desmaterializar “todas as requisições de meios complementares de diagnóstico e terapêutica, abrangendo todas as áreas de exame, disponibilizando-os para consulta do utente no Portal SNS e na app SNS24”.
É muito pouco para o ambicioso timing para implementação desta medida: o quarto trimestre deste ano.
Há vários desafios e barreiras a uma medida com tamanho impacto na vida das pessoas. Desde logo porque o próprio sistema não está pronto para que isto aconteça. O Governo diz que tudo estará operacional no último trimestre do ano, mas algumas das componentes, nomeadamente a autenticação biométrica, está apenas prevista para o segundo trimestre de 2023.
Trata-se, ainda, de uma medida a dois momentos e que, mais uma vez, vai complicar a sua execução.
Além disso, preocupa-nos o facto de o sistema não estar pronto, de a infraestrutura também não estar pronta e, mais do que isso, é preocupante que os sistemas informáticos, entre hospitais privados e hospitais públicos, não comuniquem entre si. Ou seja, não se olhou para a interoperabilidade entre os sistemas – muitas pessoas fazem TAC e recebem os resultados em CD num hospital privado, chegam ao médico de família e o computador disponível não tem drive para ler o CD – e imagino que se tivesse drive se calhar não teria o software apropriado.
Isto mostra que é muito complicado pensar em medidas desta magnitude quando temos estes desafios a priori.
Contudo, os problemas não terminam aí. É importante ter em conta que a maioria dos utentes dos centros de saúde são pessoas com pouca ou nenhuma literacia digital, bem como os profissionais de saúde. Como é que dizemos a uma pessoa com 65 ou 70 anos, de uma aldeia perdida em Portugal, que tem de ativar a chave móvel digital do seu Cartão de Cidadão, que tem de ter uma conta de email para receber os seus exames, ou uma app? É difícil, para não dizer impossível.
Na minha opinião, junta-se ainda um problema de dimensão se pensarmos quantas pessoas poderão vir a aderir a estes novos serviços, versus o investimento em causa.
Outra questão que importa ter em conta nesta simplificação e desmaterialização dos processos de saúde tem que ver com o risco cibernético e os crescentes ataques informáticos que possibilitam roubo de informações pessoais. Estamos a abrir uma caixa de pandora para algo extremamente sensível e preocupante: os hospitais públicos têm sido fortemente atacados por cibercriminosos para roubo de dados pessoais, no caso dados de saúde, portanto, na categoria dos chamados “dados especiais”. Há vários casos recentes publicados na comunicação social. Os próprios websites oficiais dos governos apresentam inúmeras fragilidades e quem ataca só tem de ter um êxito, enquanto quem defende tem de defender tudo. É uma luta desigual.
Pessoalmente, sinto-me desconfortável em ter os meus exames médicos digitalizados e disponíveis no Portal SNS ou na app SNS24, porque esta informação é valiosa, são dados especiais – não há dados mais sensíveis do que os dados de saúde – e tenho muitas reservas em usufruir deste serviço. Certamente, pouca gente pensa nisto, mas este é um problema que deve também ser acautelado.
Parece-me, por isso, que esta é uma medida desgarrada do Simplex, apenas com direito a um parágrafo no seu website. Não há infraestrutura preparada e os prazos não são, de todo, exequíveis.
Esta medida parece-me, por isso, apenas uma ação de propaganda política quando o tema da saúde está na ordem do dia e uma grande distração para aquilo que é essencial e que o Governo deveria efetivamente estar preocupado em resolver: o Estado tem de proteger os seus cidadãos e tem de garantir melhores condições de acesso à saúde, à educação, à justiça, à escolaridade e parece-me que estamos a falhar como povo em tudo isto.
Tudo isto tem um preço no final. No crescimento económico, na qualificação das pessoas, e, em última instância, nas empresas. Portanto, medidas ad hoc, como se diz, para inglês ver, não, obrigado.