Em Portugal, o putativo próximo Primeiro do país, Pedro Nuno Santos, acusou o Chega de querer colocar o Estado “dentro dos estreitos limites que o liberalismo clássico desde sempre lhe traçou.” Ouvir chamar liberal clássico ao Chega, chega a ser lisonjeiro para o partido de André Ventura, que poderá ser muitas coisas, mas essa não se encontra entre elas. Quando se trata do Chega, o que PNS de verdade teme, ou devia temer, não é tanto a defesa de um suposto liberalismo de corte clássico, como o aparecimento de outro partido social-democrata que lhe faz sombra. O Chega representa aquele segmento do eleitorado que já constatou que nem o PS (nem o PSD) lhe vão dar o Estado do Bem-Estar que lhe prometeram há quase cinco décadas.

Não deixa de ser curioso que PNS tenha deixado de lado a cassete do Chega ser um partido fascista ou de ultra-direita para arremessar um aparentemente insultante “liberais clássicos”. Esta última é uma avis tão rara em Portugal que dificilmente poderia justificar os 7,2% que o Chega conseguiu nas últimas eleições, para não falar nos catorze ou quinze que as sondagens lhes dão para as próximas. Isto é algo que PNS e o seu PS estão cansados de saber. Parece-me que o problema do Partido Socialista não é tanto a ameaça do conservadorismo do Chega, como a extinção do socialismo que consta no seu próprio nome. Não que a grande maioria das pessoas tenha deixado de ser socialista. Simplesmente não querem ser lembradas disso e preferem que as chamem por outro nome. Tanto assim é que, em todo o mundo civilizado, os partidos socialistas ou se extinguiram ou se reciclaram e o nome desapareceu das suas siglas. As duas excepções relevantes são Portugal e Espanha onde uma população envelhecida e a ocupação do aparelho do Estado pelos respectivos partidos permitiram manter orgulhosa e impunemente um nome que nenhum dos seus eleitores, em particular os mais jovens, quer adoptar. PNS representa uma nova geração de socialistas, na qual ninguém que não tenha um tacho na Administração Pública se quer identificar como tal.

É aqui que a palavra liberal entra em cena. Para os jovens votantes que não conheceram outra coisa que não fosse a ineficiência e o nepotismo do Estado português, a palavra liberal parece conter alguma irreverência contra o estado a que isto chegou. É algo que lhes permite sonhar com um país mais moderno e mais próspero mesmo que não saibam exactamente como nem porquê. Deste modo, o PS tem um problema: como não há campanha de marketing que possa transformar em liberal aquele que foi o partido do regime por antonomásia nas últimas décadas, para captar o voto das novas gerações há que transformar o Liberalismo naquilo que o PS, em aparência, sempre defendeu.

As palavras de PNS são uma tentativa de dividir para reinar. Existem os liberais maus, os clássicos, que votam no Chega, e os bons, os modernos, para os quais felizmente existe o Partido Socialista que, apesar de não se chamar liberal é o que melhor encarna esse liberalismo moderno no xadrez político pátrio. Francisco Louçã tentou algo parecido há dois anos atrás. Preocupado com a ascenção da IL, decidiu demonstrar que os liberais (quer dizer aqueles que se dizem liberais) tinham traído o Liberalismo (o verdadeiro, o dele). Agora temos o Pedro Nuno Santos a dizer que, afinal, os que traíram o Liberalismo (o clássico) é que são os verdadeiros liberais. Confuso? Essa é a ideia. Deste modo se não for possível que os liberais votem no PS, pelo menos consegue-se que àqueles que votem na IL não lhes pareça estranho que esta se aproxime de um partido que se chama socialista mas é, afinal, tão liberal como eles.

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Chegados a este ponto muitos leitores pensam. Não pode ser. Uma coisa é Louçã querer fazer passar os liberais franceses do século XIX por traidores a uma Revolução que verdadeiramente nunca renegaram (algo que destripei aqui, aqui e aqui) e outra é Pedro Nuno Santos querer convencer a juventude portuguesa de que o partido dele é que é o maior defensor do Liberalismo em Portugal, contra essa corja de liberais clássicos que correram para os braços do Chega. Quero dizer, mesmo que fosse verdade que hordas de liberais clássicos estivessem neste momento a bater à porta de André Ventura a implorar que este governe nos tais “estritos valores” a que PNS se refere, seguramente que os outros liberais, os modernos suponho, estariam mais tentados a seguir os passos dos primeiros por afinidade ideológica que a correr para os braços de estivador do Partido Socialista. Quero dizer, não podem ser ingénuos a esse ponto. Ou podem?

Eu diria que não, mas no outro dia li no Observador este breve artigo, escrito pelo Dr. Ricardo Ladeiras Lopes, médico cardiologista e professor universitário, que tenta explicar, pela afirmativa e pela negativa, o que é “ser liberal” (as aspas são dele). Eu não conheço o senhor em questão, mas um médico cardiologista, ainda por cima professor universitário, não pode ser um tipo completamente desarticulado, nem mesmo depois de várias décadas de paixão desenfreada dos governos socialistas pela educação. Membro do Grupo de Coordenação Local do Núcleo Territorial de Matosinhos da Iniciativa Liberal (GCLNTMIL para simplificar), parece-me representativo dessa geração ilustrada e engajada politicamente que procura dar conteúdo ao Liberalismo moderno, o tal que PNS pretende cooptar e eles teriam a obrigação de evitar.

Desde logo, é preciso reconhecer que definir o que é “ser liberal” em meia dúzia de parágrafos é um trabalho hérculeo que se agradece. Isto porque, e resumindo uma longa história, os liberais foram na sua génese, em Paris no princípio do séc XIX (e não através dos séculos XVII e XVIII como o autor afirma), um grupo de intelectuais e políticos românticos (no sentido de pertencentes ao Romantismo e não que andassem apaixonados uns pelos outros, ainda que existisse pelo menos um caso famoso) que se destacaram pela sua oposição tanto aos excessos da Revolução Francesa como à Aliança entre o Trono e o Altar, que governou a França após a queda de Napoleão. Em 1830 conseguiram lograr o seu objectivo político convertendo a França numa monarquia constitucional. Só que chegados ao poder houve liberais para todos os gostos. Uns defenderam a liberdade económica, outros o proteccionismo aduaneiro e os monopólios industriais. Uns a emancipação das colónias e outros o sistema colonial; uns o sufrágio universal outros a restrição do voto a uma minoria; uns a responsabilidade do Estado na resolução das questões sociais, outros a caridade exclusivamente privada e outros ainda a proibição da mesma. Uns a escravatura, outros a abolição da mesma. Alguns defendiam a total separação da Igreja e do Estado, outros defendiam o favorecimento de uma determinada confissão.

É por isto que, a priori, tenho que reconhecer a valentia do Dr. Ricardo, porque descobrir o que é ser liberal através da política (com minúscula, no sentido de policy em inglês) é uma tarefa que eu nunca arriscaria. Ele arriscou só que, como seria de esperar, a coisa não correu bem. Decidiu de forma um tanto maniqueista que são liberais aqueles que defendem as coisas de que ele gosta: os que não querem “privatizar tudo”; os que não querem “acabar com o estado social” ou com “direitos fundamentais ((…) como a saúde, educação e habitação, entre outros)”; ou acabar com a “protecção social em situações de fragilidade”; os que não defendem o “capitalismo selvagem”; os que defendem “uma intervenção limitada do Estado na economia”, mas que evite “potencias desigualdades, falta de protecção social e eventuais problemas associados à desregulação extrema”, etc.. Enfim, por esta altura o PNS já está a esfregar as mãos de contente.

Não é que não existam liberais que defendam tudo isto. Longe de mim querer afirmar tal coisa. Eu até vou mais longe e diria que qualquer liberal defende tudo isto. Mas não só. Qualquer liberal, qualquer socialista, qualquer social-democrata, qualquer democrata cristão, qualquer comunista, qualquer fascista, qualquer fundamentalista islâmico, em suma qualquer pessoa que não seja louco ou anacoreta. A questão é o que estas palavras significam no contexto actual. E, grosso modo, no contexto actual significam o que os donos do discurso político, em Portugal o Partido Socialista, e em geral os colectivistas social-democratas dizem que significam. Para de verdade ser liberal é necessário, em primeiro lugar, saber desmontar este discurso e o Dr. Ricardo Ladeiras Lopes, assim como grande parte dos liberais que pensam da mesma forma evidentemente não sabem.

Isso fica bem patente na própria estrutura do artigo. Na primeira parte, o Dr. Ladeira Lopes define o que é ser liberal resumindo os princípios que os liberais defendem à sua essência. Na segunda, de onde retirei os excertos acima publicados, refuta o que não é ser liberal enumerando aquilo que um verdadeiro liberal não defende. Em princípio a segunda parte deveria ser uma conclusão lógica da primeira e acredito que na cabeça do autor assim seja, ainda que do texto tal não transpareça. Nos princípios o Dr. Ricardo afirma que um liberal “defende (…) a propriedade privada (em oposição ao colectivismo(…) em que a identidade, propriedade e interesses individuais estão subordinados ao Estado)” mas na segunda parte, isto é, na prática, ser liberal “é aproveitar da melhor forma possível todos os recursos existentes (públicos, privados e sociais) (…) [s]em preconceitos ideológicos”. Eu não digo que um liberal não possa estar de acordo com a existência de propriedade pública, mas não percebo a velocidade com que um princípio, no seguinte parágrafo, já passou a ser um preconceito.

O autor define as três bandeiras de um liberal como sendo a liberdade individual, o Estado de Direito e a liberdade económica. Esta separação parece-me algo arbitrária já que a liberdade económica está perfeitamente contida na liberdade individual e o Estado de Direito é simplesmente o mecanismo com que se procura proteger essa liberdade individual. No fundo, a única bandeira do Liberalismo é a liberdade individual. Definir o que isto significa é mais complicado, e é talvez por isso que existem tantas correntes dentro do Liberalismo (tantas quanto liberais, diria), mas quando a questão colocada é simplesmente “o que é isso de ‘ser liberal’?” qualquer excepção a este princípio, o da liberdade individual, quer dizer, qualquer aceitação da intrusão do Estado na vida das pessoas deveria ser devidamente fundamentada. Neste artigo não é, e suspeito que na cabeça de muitos liberais também não seja.

Por exemplo, e para terminar: a defesa do Estado de Direito. É preciso saber o que é que isso significa. Repare-se que qualquer Estado, de Direito ou não, para ser reconhecido como tal tem que ser o detentor legítimo do monopólio da violência. Isto significa que qualquer Estado, desde a antiguidade ainda mais clássica que os liberais que votam no Chega até aos nossos dias, para ser suportado pelos seus súbditos, já prestava de forma mais ou menos eficiente o serviço de proteger a liberdade de cada indivíduo da agressão dos outros indivíduos. Dito de forma mais simples, o roubo, o homicídio e a escravidão de cidadãos ou homens-livres foram sempre perseguidos e condenados por qualquer Estado digno desse nome em qualquer época. O que foi geralmente acatado com impunidade em toda a História da Humanidade foi o roubo, o homicídio ou a escravidão quando perpetrados pelo próprio Estado. O que um liberal exige quando exige um Estado de Direito é que este contenha os mecanismos jurídicos que protejam o individuo desse roubo, desse homicídio ou dessa escravidão específica, porque para as outras não é preciso. Dizer que um liberal defende a existência do Estado de Direito por ser “fundamental para a estabilidade e justiça social” é não compreender exactamente o que é que um liberal defende. Qualquer pessoa medianamente atenta sabe que as maiores ditaduras do séc. XX se ergueram sobre a defesa da “estabilidade e da justiça social”.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.