Nem a propósito. No dia em que o Observador publicou a primeira parte das traições anacletas, o grande exegeta socialista do Liberalismo em Portugal voltou à carga no Expresso. É de salientar que, enquanto no primeiro texto o Inquisidor-mor da III República nos alertava para a  existência de bons e maus liberais, nesta segunda entrega deixa cair a máscara e revela-nos que, afinal, os liberais evidenciam um perene “asco à democracia” porque, afinal de contas, essa é a essência mesma do Liberalismo. Explica Louçã que foram as forças populares (que do alto do seu assento no Conselho do Banco de Portugal acreditará representar) as que sempre impulsaram o ideal democrático, ao qual os liberais relutantemente aderiram, para trair na primeira ocasião.

Esta segunda entrega foi acicatada pelo texto de Maria de Fátima Bonifácio, no Sol, onde afirma que o Liberalismo nunca foi democrático. Não estou de acordo com o enunciado. Parece-me uma leitura demasiado específica do conceito de democracia que conclui que, se há outros, mais radicais, que se apropriaram do termo, então o Liberalismo não pode ser democrático. Em realidade, simplesmente não foi democrático como os chamados Democráticos eram. Como se os membros do Partido Republicano não fossem democratas porque se opõem ao Partido Democrata ou, vice-versa. Pelo contrário, os antigos liberais e proto-liberais conheciam bem o conceito de democracia, até pela sua veneração, às vezes imprudente, da Antiguidade Clássica, e era através desse conhecimento que desconfiavam, como Aristóteles desconfiou, do recurso generalizado à mesma na decisão política. Isso fica logo patente na preferência pela palavra “república” (isto é, o governo para o interesse-comum) para definir o Estado que queriam estabelecer, em detrimento da palavra “democracia” que, na sua forma degenerada, significava o governo de todos para o interesse-próprio. Só que como a Politeia em teoria também podia ser uma monarquia ou uma aristocracia, a preferência geral dos liberais residia essencialmente numa fórmula democrática, especialmente a partir do momento em que assumiram como credo o conceito de soberania popular.

É por isso que, por muito que lhes possa doer aos eleitores do BE, muitos dos primeiros liberais se consideravam legitimamente democratas e ninguém pode afirmar o contrário. É que, como estes aprenderam lendo os clássicos gregos (misteriosamente desaparecidos da educação progressista), a democracia era simplesmente um sistema político em que todos os cidadãos tinham direito de voto, algo que não era sinónimo de sufrágio universal, já que nem todos os habitantes da polis eram cidadãos. Louçã não ignora esta diferença, simplesmente aproveita que a democracia tenha passado de ser uma forma de governo a ser uma forma de vida nas sociedades ocidentais para introduzir um argumento insidioso na sua tese.

No entanto, que a defesa do sufrágio universal seja considerada por um socialista como Louçã como o único conceito de democracia é fonte de alguma perplexidade, dado o track record do Socialismo nesse capítulo. Onde o Socialismo prosperou, passe o oxímoro, não deve ter existido nenhum caso concreto de ampliação do sufrágio, pelo menos a longo prazo. Este facto até tem feito dos intelectuais socialistas, e não dos liberais, os maiores criativos da actualidade, quando se trata de explicar ao público em geral os recuos democráticos em nome do “bem comum” nos modelares estados socialistas, castristas ou bolivarianos. O facto de China ou Coreia do Norte se considerarem democracias apesar da ausência de eleições, demonstra a elasticidade do termo, quando apropriado por socialistas. Para um socialista, democracia é quando o Homem quiser, se esse homem for o secretário-geral do Partido entenda-se. Para os liberais, o socialista já acha que o conceito tem que ser rígido: enquanto não votarem as mulheres, os adolescentes, os imigrantes, os cães e os gatos está demonstrado o asco.

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Por outro lado, talvez Louçã esteja orgulhoso do facto de a maior façanha democrática ter ocorrido precisamente num país socialista, a Albânia de Enver Hoxa: A Frente Democrática (paradoxalmente constituída por apenas um partido, o Partido Trabalhista Albanês, mas aberta à participação de outros partidos anti-fascistas – se por acaso tivessem surgido) conseguiu arrecadar 100% dos votos nas eleições parlamentares albanesas de 1970, com zero abstenção. Toda a gente apareceu para votar e toda a gente votou nos comunistas. Como não gostar do sufrágio universal nestes casos? Não são os votos que contam, mas quem conta os votos.

Pelo que se pode deduzir dos dois textos anacléticos, os liberais traíram a democracia desde o princípio, antes mesmo de existirem. Na Revolução Francesa abortaram o processo democrático baseado no sufrágio universal. Deduz-se que, para o ultra-democrata Louçã, a Constituição jacobina de 1793, que instituiu o sufrágio universal (masculino), é o produto fiel da Revolução Francesa que constituições posteriores foram revendo e restringindo, por culpa dos liberais. A primeira objecção é cronológica: por que motivo a Constituição de 1793 é a verdadeira constituição revolucionária e não a de 1791? Exceptuando jacobinos como Louçã, mesmo os mais ardentes defensores da Revolução Francesa (e em particular os que fundaram o Liberalismo duas décadas mais tarde) consideraram o episódio do Terror como um parêntesis, um episódio incómodo num acontecimento glorioso ou um excesso dos verdadeiros valores revolucionários. Como é que, de repente, a Constituição promulgada por Robespierre é o melhor exemplo dos propósitos revolucionários?

A segunda objecção é factual: basta uma coisa ser escrita para acontecer? Porque ainda que a Constituição de 1793 tenha instituído um sufrágio universal, foi imediatamente suspensa pelos próprios jacobinos, pois atrapalhava a implementação da própria Revolução, quer dizer, a instauração do Terror. Declarar o sufrágio universal para depois o suspender parece ser suficiente para conseguir o cartão de democrata para o camarada Louçã, já querer restringir esse sufrágio em 1795 às fórmulas conhecidas na antiguidade grega e na modernidade inglesa de então é uma traição à democracia, mesmo que, no segundo caso, até tenham existido eleições de facto e, também de facto, o censo para as eleições primárias fosse sensivelmente o mesmo que em 1793 – 5  milhões de pessoas.

No entanto, o ponto fulcral da questão nem é este. O ponto principal é perceber como é que aqueles que supostamente têm “asco à democracia”, isto é, os partidários do Liberalismo, outorgaram o sufrágio universal, primeiro aos homens e depois às mulheres? É que, apesar de tudo, foi nos países liberais onde o sufrágio se foi alargando até incluir todos os cidadãos adultos. De acordo com a opinião do nosso Incorruptível, foi pelo trabalho incansável dos socialistas na liderança do povo que exigia essa mesma representação amplia e democrática. Desculpem se não faço uma vénia. A presença de socialistas e de povo na revolução de 1848  é inegável. O que é mais difícil de encontrar é uma aliança entre eles. É que, mais que uma preocupação pela falta de participação democrática, as pessoas reclamavam contra a crise económica. Apenas na medida em que esta se confundiu (bem ou mal) com o regime é que este caiu. Na nova ordem, o sufrágio universal para eleição do governo foi instaurado (reinstaurado para quem acredita que existiu em 1793), algo saudado efusivamente pelos liberais de todo o mundo, desde os Estados Unidos às Filipinas (terão contido o vómito?). E o povo? O povo, aproveitando que o deixavam universalmente escolher quem manda, foi a correr votar em Luís Napoleão, que ganhou as eleições com quase 75% dos votos e aproveitou a popularidade para se coroar imperador uns anos mais tarde.

Tanto liberais como socialistas aprenderam a lição e, derrubado o Segundo Império, decantaram-se pela república parlamentar. Até à V República e à vitória de De Gaulle em 1965, não voltou a haver uma eleição presidencial directa em França para o cargo de chefe de Estado, nem mesmo nos saudosos tempos (para Louçã) do Cartel des Gauches. O parlamentarismo, caso Anacleto ignore, também é objectivamente uma restrição à democracia. É uma tentativa de dar garantias de representação às minorias algo que a democracia, por si só, não obriga. É que o sufrágio universal também tem destas surpresas: que Hitler e Mussolini ou até mesmo Trump e Bush, ou que não digamos Thatcher e Reagan, estes últimos, supremo mal na Terra dos Valores Invertidos, podem muito bem ser (e foram) eleitos pela massa ignara. Nesse momento, a democracia defendida por Louçã converte-se, como água em vinho, num exercício burguês para manter o proletariado alienado e a luta armada apresenta-se como o único recurso para, em nome do povo, a vanguarda do proletariado tomar o poder. Uma opção a que os revolucionários comunistas, seguramente contrariados, tiveram que recorrer muitas vezes, até porque é impossível encontrar um partido comunista que tenha ganho umas eleições livres sem se esconder atrás dos idiotas úteis de uma qualquer frente popular. Excepto na Albânia, claro, onde depois de tomado o poder, os comunistas até se puderam dar ao luxo de formar uma frente popular sozinhos.

Louçã tem alguma dificuldade em entender o carácter dinâmico das ideias em sociedade. Esta deficiência é muito comum nos iluminados, a quem o conhecimento chega em bloco (de esquerda?) perfeitamente esculpido e polido, pronto para ser revelado aos meros mortais. Os iluminados têm a solução. A desconfiança por parte dos liberais na democracia por sufrágio universal como garante dos direitos naturais dos indivíduos nunca foi (nem é) infundada. Mas apesar disso e com todos os seus defeitos, foram as sociedades liberais as que evoluiram para essa fórmula, nem que seja como mal menor, considerando as alternativas.

Para perceber a questão de forma ainda mais abrangente, que responda também às outras acusações de Louçã sobre a natureza do Liberalismo (misógino, racista e colonizador, no seu parco entender), poderia até dizer-se que, logo em 1830, o Liberalismo conseguiu lograr os seus objectivos políticos ao derrubar a Santa Aliança entre Trono e Altar e converter a França numa monarquia constitucional. Nesse momento até se poderia ter dissolvido como projecto político. Afinal de contas, essa era a causa única que agregava um grupo muito diverso de intelectuais românticos que inicialmente defenderam aquele conjunto de ideias políticas que começaram a conhecer-se como Liberalismo. Não se dissolveu, mas dividiu-se. Chegados ao poder, era necessário governar, e se em Política com maiúscula havia unanimidade de opinião, em política com minúscula, isto é, nos variados programas de governação, diferentes liberais defenderam ideias tão opostas como a liberdade económica vs. o proteccionismo aduaneiro; a emancipação de colónias vs. o sistema colonial; o sufrágio universal (masculino) vs. a restrição do voto à minoria esclarecida ou com posses; um Estado com responsabilidade nas questões sociais vs. a caridade privada ou a total abolição da mesma; a separação de Igreja e Estado vs. o favorecimento de uma determinada confissão; etc, etc.

Obviamente que diferentes ideias sobre estes assuntos levaram a que os liberais à época debatessem estas questões calorosamente (ao mesmo tempo que, ao estilo de Louçã, se acusavam mutuamente de traição ao Liberalismo). Por exemplo, Stuart Mill, esse liberal sem mácula aos olhos de Louçã (pelo menos até ao próximo opúsculo no Expresso), acreditava ser o colonialismo uma oportunidade para levar a civilização aos “bárbaros”. No entanto, os países liberais acabaram mesmo por descolonizar, normalmente por iniciativa própria, já durante o século XX. Não é coincidência que o último país em descolonizar tenha sido Portugal, o menos liberal de todos. Em relação ao voto feminino, apesar de toda a retórica louçânica, na Comuna de Paris em 1871 os revolucionários defensores das causas feministas também não deram o voto às mulheres (nem a possibilidade de se candidatarem). Não quero com isto dizer que os revolucionários de 1871 queriam oprimir as mulheres, pelo contrário, quero dizer que não se pode deduzir isso de ninguém – liberal, conservador ou socialista – por não ter apoiado o voto feminino durante o séc. XIX.

Tudo isto ajuda a explicar aquilo que Louçã confunde com traição ao Liberalismo. Muitos liberais perceberam que, como também acreditava Adam Smith, as instituições são resultado da acção, mas não da planificação humana. À medida que o tempo avançou e as ideias sobre o papel das mulheres, o sistema colonial, a democracia ou o racismo se foram debatendo, chegou-se a um grande consenso liberal sobre essas matérias. Essa é a verdadeira vantagem do Liberalismo enquanto sistema político: permitir o debate livre entre diferentes posturas sobre assuntos fulcrais da política. Algo que as verdades reveladas dos sistemas totalitários, incluídos os democráticos, impedem para poder sobreviver. A regeneração dinâmica das instituições, a sua destruição criativa ou a emergência de novos processos sociais só acontece de forma natural num regime de liberdade. Os liberais que ainda não se renderam ao racionalismo utilitarista, acreditam ser essa a via para que as instituições, entre elas o Estado, sirvam de garantia dos direitos naturais e sejam verdadeiramente úteis no dos planos vitais dos indivíduos, como forma de se coordenarem em sociedade. O contrário é anarquia sob aparência de ordem. É subjugar os indivíduos aos ditames de demagogos iluminados e/ou aos caprichos de populações infantilizadas. É, em suma, a verdadeira traição ao Liberalismo.