“Os países nascidos da descolonização ficaram comprometidos no seu desenvolvimento, em consequência: da destruição causada pelas guerras; da retirada de populações; da fuga de técnicos e do baixo nível das populações locais. Ficaram dependentes das antigas potências colonizadoras, ou das grandes potências, EUA e URSS. A submissão destes países aos interesses estrangeiros, desejosos de manter o acesso a matérias-primas e de assegurar um controlo estratégico das antigas zonas coloniais, deu origem ao neocolonialismo. Este tipo de domínio, considerado responsável pelo subdesenvolvimento, foi condenado na Conferência de Argel, em 1973. Os países do Terceiro Mundo reclamaram uma nova ordem económica favorável para poderem superar o atraso e afirmar a sua independência efetiva.”  

Salvo detalhes acessórios, o excerto ajusta-se ao parecer de um Comité Central ou a uma peça político-ideológica pura e dura porque se orienta por teses maniqueístas com enviesamento terceiro-mundista quando está em causa a interpretação de fenómenos sociais e históricos intrinsecamente complexos. Acontece que são os últimos que caracterizam as sociedades que ambicionam ser democráticas, livres, plurais, heterogéneas, intelectualmente dinâmicas na relação consigo mesmas, isto é, com o seu percurso histórico, com as suas referências identitárias, com o seu sentido de pertença civilizacional.

Detalhando um pouco mais, o excerto evidencia dois dos atributos que melhor definem os discursos ideológicos: a seletividade no olhar sobre o real, isto é, a arte de se captar apenas o que se quer ignorando o inconveniente; e a transformação valorativa-moralista do que é ambivalente, por isso mesmo humano, em produtos interpretativos que se limitam a fragmentar a vida vivida em carrascos ‘versus’ vítimas, exploradores ‘versus’ explorados, culpados ‘versus’ inocentes, bons ‘versus’ maus. Seria difícil encontrar vias mais eficazes para castrar inteligências.

Mas não é pela carga ideológica que a composição se aproxima do absurdo racional. Nesse campo é quase perfeita. O absurdo reside na fonte de legitimidade em que se sustenta. A citação é uma análise historiográfica, quer dizer científica e academicamente legitimada, que concluí uma unidade didática de um manual de história do 12º ano de grande divulgação em Portugal em utilização no ano letivo de 2015-2016. Não do ano letivo de 1977-1978.

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Num manual de história devidamente certificado, como é o caso, a análise historiográfica assume valor científico (a citada) precisamente por não ser confundível com as fontes históricas de uma dada época (a matéria-prima, por exemplo, excertos de discursos de Estaline, Hitler ou Mao Tsé-Tung). Muito menos se deve confundir com um mero arrazoado opinativo (tipo conversa de café). E nada de substantivo se alteraria se citasse os autores do manual escolar de onde foi retirado o excerto, o título, o volume, a editora, o local de edição e a página. Noutros manuais escolares de outros autores, de outras editoras, de outros níveis de ensino e de outras disciplinas exemplos equiparáveis seguramente não faltarão.

Uma sociedade que ambiciona ser mais justa e próspera deveria evidenciar preocupações mais do que mínimas com o modo como são geridos os núcleos decisivos ao seu desenvolvimento, muito em particular dos que condicionam o sentido dominante do pensamento coletivo. Mais do que a liberdade de escrever este ou aquele artigo na imprensa, publicar este ou aquele livro, defender publicamente esta ou aquela opinião, em sociedades de ensino massificado o impacto social por excelência resulta do modo como o poder tutelar do Estado se posiciona face à produção e regulação de conhecimentos com significado para a vida quotidiana que, na atualidade, resultam de compromissos entre as dimensões científica, académica e de senso comum.

A massificação da escolarização tanto pode gerar um tipo de estado que torna a sociedade que tutela intelectualmente criativa e dinâmica e, por isso, mais justa e desenvolvida; quanto pode gerar um tipo de tutela intelectual sobre os indivíduos comuns tosca, castradora, autoritária, estéril, conflituosa. O excerto do manual de história do 12º ano não deixa dúvidas sobre qual das tendências domina a sociedade portuguesa que, por alguma razão, persiste num longo ciclo em que não se consegue distanciar de um estádio endémico de pobreza, frustração, instabilidade, crises identitárias ainda assim mitigadas pelas vantagens de pertencer ao contexto europeu ocidental.

Sociedades dinâmicas e prósperas são as que permitem que as mais variadas sensibilidades no domínio do pensamento se manifestem, mesmo as mais extremadas. Os riscos que correm têm a ver com a possibilidade dessas propostas extremadas serem materializadas, o que resulta no empobrecimento ou na ameaça à vida coletiva. Todavia, tal risco apenas existe quando o que é extremado invade e permanece no interior das instituições de referência do estado, colonizando a partir daí o sentido da vida social. Saber traçar e garantir a fronteira entre, por um lado, ideólogos e ideologias de fação e, por outro lado, o funcionamento do estado é o que permite diferenciar as sociedades prósperas das outras.

Por essa e todas as razões, quando está em causa a gestão de conhecimentos sobre a condição humana ou sobre fenómenos sociais e históricos intrinsecamente ambivalentes, o estado e respetivos organismos existem para respeitar e fazer respeitar a sociedade que tutelam sem pretensões de a ela se substituírem, orientando-se o mais possível por princípios de neutralidade. Com mais rigor, pelo princípio da neutralidade axiológica no sentido weberiano do termo que significa equacionar a hipótese interpretativa inversa à que se defende desde que ambas sejam plausíveis (e, acrescento, socialmente aceitáveis).

Não exigiria grande esforço intelectual transformar o sentido do excerto do manual de história do 12º ano numa retórica opinativa de sinal contrário também legítima. Não faltam elementos factuais que comprovam que, desde que a história se fez história, sociedades e países menos desenvolvidos (na saúde, na cultura escrita, na ciência, na monetarização da economia, na indústria, na edificação de infraestruturas materiais, na organização das instituições políticas e sociais, nos hábitos quotidianos, no funcionamento do estado, na transformação tecnológica, entre outros domínios) sempre retiraram vantagens significativas de contactos com povos e países mais desenvolvidos.

Se o arrazoado dogmático pró terceiro-mundista apresentado no manual de história do 12º ano é tão plausível quanto a hipótese contrária, o facto da última nem sequer ser equacionada constitui um sintoma da natureza pré-científica, semirracional ou simplesmente ideológica com que em Portugal se procede à gestão do conhecimento social. Não pode existir sintoma mais evidente de um estado capturado por interesses de fação sejam eles ideológicos, corporativos, económicos ou de outra natureza.

Acrescento que o exemplo citado está longe de ser acidental ou único. Nem seria necessário mudar de manual escolar para tal conclusão. Poucas páginas antes, para explicar a social-democracia europeia, isto é, o socialismo gastam-se três parágrafos de pendor laudatório, num total de 29 linhas. Sendo manifesto o propósito comparativo, para a democracia-cristã europeia, em Portugal o campo do PSD e do CDS-PP, a seguir sobram dois parágrafos quase lacónicos que preenchem um total de 13 linhas.

Estes indícios aparentemente dispersos poderiam não ser significativos. O facto é que se inserem num rol de sintomas que concorrem sempre num único sentido, atingem outras áreas do conhecimento para além da história e espraiam-se do primeiro ciclo do ensino básico às universidades. Em suma, andamos todos a alimentar uma tosca e caríssima engenharia social destinada ao subdesenvolvimento das mentes.