Muito se tem debatido a substância da eutanásia, em geral e na sua concretização pelos projetos de lei que foram apresentados pelo PAN, pelo BE e pelo PS. Julgo ser necessário também chamar a atenção para um aspeto formal do processo de decisão que, não competindo com as questões de substância, todavia ajuda a perceber como estas devem ser debatidas no espaço político.

Nos últimos anos, a propósito das chamadas “questões fraturantes”, ouve-se frequentemente dizer que os deputados devem ter liberdade de voto porque as votações respetivas respeitam a uma “questão de consciência”. Esta expressão, que fica bem em parangonas (aludir à consciência pessoal inevitavelmente põe um ponto final a qualquer discussão) corresponde, todavia, na melhor dos casos, a um equívoco, e, na pior, a um logro do eleitorado.

Num sistema constitucional como o português, as eleições legislativas são feitas por círculos plurinominais, em listas apresentadas por partidos. Significa isto que os eleitores não escolhem um deputado, mas um partido, que é, no fundo, um intermediário entre os eleitores e os eleitos. Os programas eleitorais dos partidos assumem uma especial importância porque estabelecem a ponte entre os eleitores e os deputados eleitos, revelando aos primeiros aquilo que pensarão os segundos. Neste sentido, tanto é relevante o que lá vem dito, como o que é omitido. Os silêncios do programa eleitoral não podem ser entendidos como um cheque em branco ao deputado eleito, como zonas em que pode decidir livremente, mas, ao contrário, como matérias para cuja definição não lhe foi conferido mandato pelos eleitores. Assim, impõe-se aos deputados nestas matérias uma especial cautela, que se deve traduzir na abstenção de legislar quando estiver em causa uma alteração profunda na ordem jurídica ou uma questão particularmente controversa para a sociedade.

Efetivamente, o deputado não pode pressupor o mandato onde ele não foi estabelecido, porque ele não exerce a sua função em nome próprio, mas em nome daqueles que o elegeram e a quem representa (cfr. 147º da Constituição portuguesa). Nenhum eleitor vota na consciência dos deputados, a qual as mais das vezes não conhece nem pode conhecer. A consciência pessoal é relevante, sim, mas deve sobretudo orientar o próprio candidato a deputado, que, se for coerente e reto, deverá recusar integrar as listas de um partido que incluiu, no seu programa eleitoral, uma proposta que vai contra a sua consciência pessoal (assim, por exemplo, um pessoa que ama a liberdade e a propriedade não deve, em consciência, integrar um partido trotskista ou marxista-leninista); e deve orientar o eleitor para não votar num partido cujo programa eleitoral não está de acordo com a sua consciência (quem é contra a eutanásia não deve votar no PAN que a incluiu no programa eleitoral).

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Os programas correspondem, assim, a um compromisso dos deputados para com os eleitores: dentro daquilo que é politicamente possível – porque num espaço democrático como é o de uma Assembleia legislativa, coexistem posições muito variadas e, normalmente, diversas ou opostas – cada deputado eleito tem a obrigação de procurar cumprir as promessas que o programa encerra junto dos seus eleitores. Por isso, justamente nas democracias saudáveis se exigem e escrutinam resultados e se mede o grau de cumprimento das promessas de cada um dos partidos. Em contrapartida, a falta de correspondência entre aquilo que os partidos prometem e aquilo que realmente fazem é sinal de má qualidade da democracia, porque torna opaco o ato eleitoral – quem vota deixará de saber em que está a votar.

As questões fraturantes são-no porque dividem profundamente a sociedade. Dividem-na porque, por natureza, não são permeáveis a compromissos. Ou se é contra a eutanásia, ou se é a favor dela. Não há meio termo. Nenhuma condição de que a lei possa fazer depender o cumprimento de uma vontade de morrer pode ser considerada como uma posição de compromisso, porque a morte é sempre irreversível. Ora, numa questão tão decisiva como esta, um deputado não pode contribuir para alterar a ordem jurídica quando não foi eleito para isso. A circunstância de ela não estar prevista nos respetivos programas eleitorais deveria ter inibido o PS e o BE de terem apresentado projetos legislativos que consagrassem a eutanásia. Serão julgados politicamente por essa opção, e pelo desrespeito do eleitorado que ela encerra.

Resta esperar para ver se os deputados do PSD levam o seu mandato a sério. Por isso, senhor deputado: no dia 29, não vote em consciência. Vote no limite do mandato que lhe foi conferido por aqueles a quem representa. Se o seu partido não incluiu a eutanásia no programa de eleitoral, vote contra. Se é pessoalmente a favor da eutanásia, poderá, se quiser, apresentar declaração de voto dizendo por que razão votou contra: para respeitar os eleitores que não o constituíram seu representante para o efeito.

Se for realmente um democrata não levará a mal que os seus eleitores alterem o voto quando, e se, o seu partido incluir a proposta no programa eleitoral. Saberá que o fizeram por razões de consciência.

Docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa