Domingo, dia 8 de dezembro de 2024, 6:00 da manhã. 

Zacky ganha finalmente coragem para sair à rua, em Jaramana, nos arredores de Damasco.

Apenas cinco horas antes, quando ainda seguia nas redes sociais o cerco das forças da oposição à cidade de Homs, ouve na rua o burburinho e espreita pela janela, com cuidado para não ser visto pelos vizinhos. Homens fardados e de espingardas na mão estavam a tentar derrubar o enorme busto de Hafez Al-Assad. Zacky não consegue desviar o olhar, esperando a todo o momento a chegada dos serviços de inteligência, ladeados pelo exército, para prender e matar os autores daquele atrevimento. Nesse momento 2 ou 3 deles – os lideres do movimento – irão para Sednaya, para serem torturados e interrogados, os restantes, serão abatidos sem piedade. E ele, que não consegue deixar de olhar, arrisca-se a ser visto por algum vizinho que o denuncie, apenas por persistir na sua curiosidade.

É certo que a sua família tem sido cautelosamente “fiel” e acima de qualquer suspeita. Cedo aboliram a Política das conversas dentro da própria casa. Às refeições e nas conversas de sala, fala-se de tudo com naturalidade, mas nunca – nem pensar – se fazem considerações sobre o regime, o seu líder ou alguma situação relacionada. Foi coisa combinada entre eles? Também não! Instituiu-se com a mesma naturalidade com se instituiram as ações imediatas que a família percorre cada vez que a luz elétrica regressa, quase sempre durante apenas uma hora, às vezes – quase nunca – durante duas. Aí começa a correria! Lavar a roupa, fazer gelo, carregar os telemóveis, ver televisão, desligar as luzes led e carregar as baterias para serem usadas, com muita parcimónia, nas próximas 23 horas sem eletricidade, especialmente dolorosas naqueles meses gelados de inverno.

Tudo normal, há 13 anos, sem questionar, sem comentar. Apenas executar. Assim que a eletricidade se vai, tudo regressa ao ritmo lento dos serões na família de Zacky.

O seu pai, engenheiro de profissão, trabalha na manutenção de elevadores dos edifícios do governo. Sobre a sua profissão não há conversas e ele nunca traz notícias sobre os seus dias, colegas de trabalho, ou situações ocorridas. Não que alguém lhe peça silêncio. Nem pensar! Se tivessem que o fazer, não seria certamente em tom de conselho e o seu destino já não seria a sua casa e a sua família…

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Já Anah, a mãe de Zacky, é enfermeira no hospital do Sham (Damasco). Desde que o Anthony, o irmão mais velho de Zacky, partiu em 2015 com a mulher e filha bebé de 6 meses para a Europa, nunca mais tiveram notícias de qualquer um deles. Um amigo, que também embarcou na mesma viagem, diz que se perdeu deles na Turquia e já não seguiram juntos no mesmo bote de borracha para a ilha de Lesbos, na Europa. Depois disso, nunca mais os viu. “Devem ter ficado na Turquia e tentado outra rota pela Bulgária”, escreveu ele para os tranquilizar. Mas Anah nunca se tranquilizou. Preferia saber a verdade a estes 12 anos a alimentar uma esperança vã. Mas o ser humano é assim, tem na esperança o seu último reduto, e esta, luta contra a razão e desfere golpes violentos no coração.

Desde então, Anah profere poucas palavras e chora, muito. Sabe que o maior consolo que pode dar à sua família são os seus incríveis cozinhados e é neles que se refugia, na cozinha e na mesa, a cozinhar e a comer. Mas mesmo aí, tudo se tornou mais difícil desde 2017, quando as sanções da comunidade internacional lhe tirou quase toda a comida da dispensa e obrigando o pai a passar uma noite por semana na fila para os frescos, para o pão, para a água, para a benzina.

Quem, no entanto, mais sofreu com a partida do Anthony, foi o seu irmão Rick, que está no exército a acabar de cumprir os 10 anos de serviço militar obrigatório, que é exigido ao filho mais velho de cada família. Depois do susto que foi a sua fuga épica aos jihadistas do Daesh, em Alepo, em 2016, a família – que é cristã – conseguiu organizar-se para juntar mil dólares por mês para entregar ao chefe do Rick, para que este passasse para os serviços administrativos do exército, sem ter que voltar para a frente de batalha. A sua vida foi poupada, até agora, a troco de exatamente 65.600 dólares!

A comissão de serviço do Rick vai terminar daqui a 6.000 dólares e ele voltará para casa. Mas em vez disso ser motivo de grande alegria e alívio orçamental, será apenas o recomeço da mesma história, e desta vez, o protagonista será… o Zacky! Enquanto houver filhos homens na família, um deles estará sempre a servir no exército durante uma década. O problema, é que deixará de existir o salário que o Zacky recebe como coordenador no Crescente Vermelho. Este representa 60% do orçamento da família, do qual é paga a “mesada” do chefe do Rick. Como poderá o Rick vir a ter uma remuneração equivalente, se os quase 10 anos de serviço militar o afastaram da universidade? O Zacky sim, conseguiu, graças ao “sacrifício” do Rick, tirar o curso em Engenharia de Computação no Instituto Superior de Ciências Aplicadas e Tecnologia e, por isso, o seu contributo para o orçamento familiar é tão importante.

Zacky tem apenas mais 3 ou 4 meses para ganhar coragem para seguir os passos do seu irmão Anthony, rumo à Europa. O problema é que a Europa fechou todas as portas e, se já era muito difícil lá chegar vivo, agora é mesmo impossível lá chegar. Seria possível se fosse para estudar. Conseguiria autorização e evitava perigos maiores e perseguições. Ele até gostaria de fazer um mestrado em Data Science, mas infelizmente o passaporte sírio não convence nenhuma universidade do mundo, e nunca a família teria dinheiro para tal. É mais um beco sem saída.

Mas a maior angústia da família é a Dohaa, a irmã mais nova, que contraiu poliomielite em 2014, quando era ainda bebé, no regresso desta terrível doença à Síria, depois de erradicada durante 15 anos. A Dohaa usa uma cadeira de rodas e quase não sai de casa. É uma situação muito triste para ela e embaraçosa para a família, porque a deficiência não é muito bem vista entre o vizinhos. A verdade é que a rua não está preparada para a Dohaa e em casa ela tem o carinho de todos e os cuidados de saúde prestados pela sua mãe.

A condição de Dohaa também traz outros contratempos à família. Há dois anos atrás, num serão de verão, as janelas estavam abertas porque a temperatura chegava aos 40 graus. A Dohaa, que tem tendência para falar alto, gritou muito a insultar o seu leão de peluche e, como em árabe leão se diz “al’asad”, os vizinhos pensaram que se tratava do presidente Bashar al-Assad. Foi uma enorme confusão! No dia seguinte apareceram os servicos de inteligência do regime e quase levaram o pai do Zacky para interrogatório. Toda a familia estava em pânico. Felizmente, um colega do Zacky tinha-lhe oferecido um poster e várias bandeirolas com a cara do presidente e, com hesitação mas por segurança, a família decidiu colocar o poster em destaque na parede da sala e espalhar as bandeirolas pela casa. Convencidos de que quem ama assim o seu líder não pode ser um traidor, e confirmando a existência de um leão de peluche entre os brinquedos, foram-se embora. Um susto do qual, até hoje, não recuperaram.

Domingo, dia 8 de dezembro de 2024, 6:00 da manhã.

Zacky sai por fim à rua e vê todos os vizinhos a festejar, juntamente com os homens de farda que dão tiros para o ar. Todos gritam o nome de Deus. O mesmo Deus, apesar do nome que cada um lhe dá ou da forma como cada um O adora. Nunca isso foi um tema na Síria, excepto na fugaz passagem do Daesh durante a guerra.

Nas ruas, não há sinais de violência, nem militares, nem serviços de inteligência. Só alegria, festa e estupefação, desfilando por cima dos uniformes abandonados pelos militares que fugiram “à civil”.

Sem saber explicar, Zacky sente a falta de alguma coisa. Algo que era comum em todos e sempre os acompanhara toda a sua vida. Não percebe imediatamente do que se trata, mas sente que essa ausência transformou a cidade e os transportou para um mundo totalmente novo! Ainda que sem certezas ou ilusões.

Era o MEDO que tinha desaparecido, sem tempo para se despedir. E em seu lugar tinha surgido a ESPERANÇA, essa velha desconhecida.