Realizou-se há pouco mais um Portugal Smart Cities Summit, evento tido como redentor dos males urbanos e amplamente referido nos media com o habitual enlevo pelas buzzwords da tecnologia.

O termo Smart Cities é geralmente usado no sentido da gestão “inteligente” das áreas urbanas, com recurso às tecnologias de informação e comunicação (TIC). Focada na gestão digital em tempo real de várias infraestruturas e processos urbanos, a Smart City depende de uma rede de recolha e monitorização de dados e da “Internet of Things” para a gestão integrada dos sistemas de mobilidade, abastecimento público, recolha de resíduos, acesso a Equipamentos, Segurança, Ambiente, serviços à Comunidade, entre outros. Em última análise, procura-se melhorar a eficácia e a eficiência da gestão urbana e fomentar a sustentabilidade e a aproximação do governo da cidade aos cidadãos.

Com o crescimento explosivo da população urbana no mundo, a globalização das TIC e seus artefactos, a transição digital da Economia e a Indústria 4.0, as Smart Cities estão na ordem do dia. Por outro lado, a sustentabilidade urbana constitui um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, definidos pela ONU como uma visão comum para a Humanidade, sendo as Smart Cities tidas como um caminho para a alcançar.

No entanto, e sem prejuízo de reconhecer o contributo das TIC para a gestão urbana, não será esse o sentido que darei a estas notas. O meu argumento é que a incorporação de tecnologia não torna, só por si, o nosso modelo urbano “Smart” ou sustentável, não resolvendo os seus paradoxos e insustentabilidade intrínsecos. Creio até que as cidades que temos têm pouco de “Smart”, nos sentidos de, por exemplo, inteligente e racional, eficaz e eficiente no uso de recursos, ambientalmente sustentável e resiliente ou adequado às necessidades do desenvolvimento humano.

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Parece-me mais importante questionar o modelo espacial e os instrumentos de gestão territorial (IGT) que têm estado na base do processo urbano do último meio século. A meu ver, a incorporação de tecnologia neste processo seria apenas um recurso “ortopédico”, que não pode redimir males mais profundos e graves, que insistimos em não encarar seriamente.

Not so Smart. O problema, em algumas notas da vida urbana na AML

Tomemos como referência o caso de Lisboa e da sua área metropolitana. O trânsito nas cidades é uma das principais causas de impactos ambientais, de stress humano e de perda de produtividade. Lisboa, onde circulam cerca de meio milhão de carros todos os dias, é tida como uma das piores cidades europeias neste domínio e tem seguido políticas públicas erráticas na abordagem a este problema, entre a restrição tímida à circulação, até à facilitação das entradas de veículos (ver, por exemplo, os dados INRIX).

As migrações pendulares são, sobretudo, consequência do alastramento em mancha de óleo – urban sprawl – das áreas urbanas, fenómeno especialmente severo entre nós. Sabe-se que este alastramento é estruturado linearmente pelos eixos de acessibilidade, sobretudo rodoviários, e está relacionado com a criação de extensos dormitórios, áreas essencialmente monofuncionais, que continuam a depender das principais centralidades em termos de emprego e de acesso a funções centrais de hierarquia mais elevada.

Em Portugal, as razões para este alastramento são muitas e complexas, pelo que enuncio as que me parecem mais relevantes. A primeira decorre das dinâmicas populacionais, com o crescente afluxo às cidades por via da urbanização e da transferência de população do interior para as áreas urbanas no litoral. Outra, de natureza especulativa, ligada à pressão sobre o solo rural nas periferias, com as mais valias realizadas no processo de loteamento-urbanização-construção nova, relacionado com a própria estrutura fundiária. Outra, ainda, de base socioeconómica, suportada por uma população que só encontra respostas habitacionais para um poder de compra débil em localizações cada vez mais periféricas. E posso aventar ainda uma do domínio do imaginário social, alimentada pelas hipotéticas melhores condições ambientais numa ruralidade idealizada que se encontraria nestas periferias.

Os próprios IGT tiveram historicamente influência neste crescimento periférico, sobretudo pela definição de perímetros urbanos muito alargados, gerando uma oferta de solo urbanizável bastante superior às reais necessidades. Facto ainda agravado pela adesão tardia de Portugal a IGT, essencialmente a partir dos anos 90, o que deu tempo para uma transformação suburbana do uso do solo casuística e fragmentada, desligada de lógicas de ordenamento. Embora as últimas gerações de planos, já neste século, tenham procurado inverter esta tendência, o mal estava feito.

Em tempo, a lógica de localização empresarial – indústria, comércio, serviços – também se alterou, acompanhando este padrão centrífugo da localização residencial e trazendo algum emprego e funções centrais de hierarquia intermédia para as periferias. De facto, emergiram novas centralidades, baseadas em novas tipologias do edificado e de organização espacial e uso do solo. No entanto, o efeito desta relocalização empresarial não atenua as migrações pendulares, antes as agrava, estabelecendo-se um padrão multipolar de interações que gera atravessamentos complexos num território muito alargado, o modelo das áreas metropolitanas bem presente na Área Metropolitana de Lisboa (AML) – ver, por exemplo, a percentagem de ativos a trabalharem fora do concelho de residência, ou as deslocações casa-trabalho ou estudo na AML; INE.

Como tenho referido nestas páginas, uma consequência da saída espontânea de “capital” das áreas urbanas centrais – funções centrais, investimento, população e até valor simbólico – e da sua transferência para as periferias, é o esvaziamento da “inner city” e o empobrecimento da sua base económica e social, bem como da sua estrutura funcional, o conhecido “efeito donut”. Este efeito compromete o papel das áreas urbanas centrais no contexto da cidade alargada e torna-as vulneráveis à excessiva dependência de fatores exógenos.

Acresce o problema do transporte de pessoas e bens. A política pública de transportes e acessibilidades em Portugal, e especificamente na AML, tem privilegiado a opção rodoviária – precisamente, a rede rodoviária que tem potenciado e estruturado o urban sprawl – em detrimento de outras alternativas, como a acessibilidade ferroviária. Nesta opção tem-se afirmado o domínio do transporte individual sobre o coletivo, com as consequências de consumo de combustíveis e congestionamento e os impactos ambientais bem conhecidos (ver, por exemplo, a evolução da repartição das deslocações casa-trabalho ou estudo na AML por modo de transporte; INE).

De notar, também, os efeitos destrutivos sobre o Ambiente, a Paisagem e os recursos naturais que advêm do consumo do espaço rural pela transformação do uso do solo e a especulação fundiária. Pois é de facto à custa do consumo das áreas rurais – agrícolas e florestais – periurbanas que o crescimento da mancha construída se efetiva (ver, por exemplo, a evolução das mudanças de uso e ocupação do solo, ou a simulação das áreas agrícolas sujeitas a forte pressão urbana na AML; DGT e Atlas Digital AML). O mundo rural à porta da cidade e que a abastecia tornou-se um anacronismo, entre a expectativa da urbanização e a emergência de circuitos de produção e distribuição alimentar remotos e “deslocalizados”.

E ainda as ineficiências e os custos económicos do investimento público da infraestruturação – mobilidade e vias, abastecimento de água e gás, redes de drenagem e tratamento de esgotos, eletrificação, recolha de resíduos sólidos – e dotação de equipamentos públicos nesta mancha urbana extensa, dispersa e fragmentada…

Smarter. Que soluções para um problema complexo?

A insustentabilidade intrínseca do modelo territorial das nossas cidades, nas suas várias dimensões – Ambiente e Paisagem, Economia e Gestão de Recursos, Sociedade, Comunidades e Identidades – tem impactos a muitos níveis e radica em disfuncionalidades profundas do sistema territorial e do processo urbano. Infelizmente, estas disfuncionalidades, embora bem conhecidas e estudadas, revelam-se extremamente difíceis de corrigir, não se vislumbrando como a simples introdução de TIC possa alterar significativamente este quadro.

Apesar da evolução conceptual e operacional dos IGT e da introdução de políticas públicas de última geração, como a Iniciativa Nacional Cidades Circulares, a governação urbana não se tem revelado eficaz perante estas dinâmicas, muitas vezes acentuando os seus efeitos negativos, quando não estando até na sua origem.

Será aqui interessante revisitar os ensinamentos da “teoria das cidades compactas”, desenvolvida desde a década de 90 sobretudo pelos contributos de M. Jenks, R. Burgess, E. Burton e K. Williams, segundo a qual a forma urbana compacta

  • reduz a extensão e o tempo das deslocações, ao encurtar as distâncias entre locais de trabalho e residência
  • possibilita a utilização de modos mais sustentáveis de transporte, como os transportes coletivos, e promove os percursos pedonais e o uso da bicicleta
  • promove uma ocupação mais eficiente do solo, reduzindo o consumo de solo rural, pelo preenchimento dos vazios urbanos em vez do urban sprawl
  • promove a coesão, a diversidade social e a formação de massa crítica, essenciais à criação de um ambiente de inovação, oportunidades e desenvolvimento cultural
  • cria condições propícias à localização de atividades económicas que beneficiam da proximidade da população
  • permite a economia de recursos, quer a nível das infraestruturas, quer dos serviços municipais, quer da construção e manutenção dos Equipamentos públicos

Ensinamentos recuperados na tão falada – especialmente no contexto dos confinamentos durante a pandemia Covid 19 – “cidade de 15 minutos”, conceito de “crono urbanismo” aprofundado pelo Prof. Carlos Moreno, da Sorbonne, diz-se que inspirado em Jane Jacobs, e recentemente transposto na agenda política local em Paris.

Poderá a aplicação destas teorias urbanas, que só agora se começa a debater entre nós, ter alguma consequência prática num território tão marcado pelas características e dinâmicas apontadas acima? Ou não passará de algo utópico, que dificilmente poderá ir além de meras intervenções pontuais nas áreas consolidadas?

Em conclusão, de que precisamos, afinal? Não tanto de gadgets tecnológicos aplicados sobre uma realidade intrinsecamente insustentável, mas de uma revisão profunda do modo como abordamos as cidades e, já agora, o território e as suas dinâmicas: smarter public policies, smarter planning, smarter land-use management.

Este artigo é uma adaptação de um keynote speech dirigido ao 2º Congresso Ibero Americano em Estudos de Paisagem em abril 2021