O exercício da profissão de médico, traz consigo gratidão, alegria, mas também cansaço, deceção e muita tristeza.

Ser médico significa para a grande maioria, abdicar da família, dos amigos, do tempo, por vezes da vida. A solidão dentro de cada um cresce na medida em que nos entregamos mais à causa.

Rodeados de tantas pessoas, mas tão sós na nossa missão. Ser médico é servir, é estar presente.

A resiliência faz parte do nosso ADN, a abnegação também. Não existem horas, fins de semana e feriados. Festividades e aniversários.

Nunca imaginei outra profissão e cumpri o prometido algures no tempo, durante as longas horas passadas em hospitais militares, a soldados com vidas suspensas ou desmembradas, mas a quem a alegria da infância e a despreocupação do tempo trazia esperança.

Tenho o privilégio de amar a minha profissão e, portanto, é tão fácil dar. Mas um dos maiores privilégios for ter ouvido várias vezes, em primeira mão, do tão saudoso Dr. António Arnaud, o seu esforço, trabalho e dedicação necessários para a criação do SNS.

A alegria das suas palavras recriava a realidade das dificuldades por que passou, mas a paixão e amor pelo próximo nunca o deixaram desistir.

Decerto criou o melhor SNS do mundo e com toda a certeza é com muita tristeza que assiste ao seu desmembramento.

O aumento da esperança de vida trouxe consigo um aumento exponencial das morbilidades e consequentemente da utilização dos recursos dos serviços de saúde, mas que não foram acompanhadas pelas sucessivas reformas do SNS.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O encerramento de hospitais e SAP e criação dos Centros Hospitalares tornaram os serviços de urgência num caos nunca antes imaginado.

Trabalhar em condições precárias aumenta o risco de erro, expõe as fragilidades do sistema e dos recursos.

O trabalho do médico no serviço de urgência deixou de ser realizado de bom grado, antes pelo contrário, passou a ser uma imposição, violando os princípios que tanto consagra o seu espírito de missão.

A maioria da geração mais nova não cresceu com as dificuldades, não lhe foi dada a cana, mas sim o peixe e a resiliência está longe de ser o que era. Vivemos tempos diferentes e a saúde tornou-se, também ela, um negócio apetecido para os grandes grupos económicos.

A sangria de médicos jovens, recém-especialistas, para os grupos privados é um problema que agrava as condições de trabalho de quem decide permanecer no SNS.

Melhores condições de trabalho, melhores salários, escusa de serviço de urgência, são neste momento uma aposta ganha para quem quer construir família e aproveitar o melhor da vida.

O João Semana há muito que deixou a saúde: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

O poder instituído nos hospitais públicos destrói o sonho dos espíritos jovens e de quem acredita na melhoria constante dos cuidados prestados ao utente e em fazer a diferença. A violenta barreira de dogmas há muito ultrapassados, mas que se perpetuam, aliados a estatutos usurpados, tornam a tarefa demasiado árdua para quem decide ficar.

Já só permanece no SNS quem veste a camisola por amor e dedicação. As condições de trabalho e as barreiras para quem teima no estoicismo promovem a desmotivação e facilitam o incumprimento.

A meritocracia perdeu o lugar e deu espaço à resignação e ao “laissée faire, laisée passer”. Premeia-se a inoperância e a complacência, a incongruência e a desresponsabilização.

O serviço de urgência tornou-se para muitos médicos um local a não frequentar. Sufocam pelas condições de trabalho, sufocam pelo número de doentes, sufocam pelo número de horas que lhes são impostas, mas também pela discrepância do valor a que igual trabalho é ressarcido.

A máxima, “igual trabalho, igual salário”, preconizada no Código do Trabalho de 2003, no seu art.º 263º, não se aplica aos médicos do quadro que cumprem o seu horário semanalmente no serviço de urgência dos hospitais do SNS.

O valor/hora de um médico, a cumprir o seu horário semanal no serviço de urgência do seu hospital, chega a ser três vezes inferior ao valor/hora de igual tarefa realizada por um médico não pertencente a esse Hospital, mas que ali faz tarefa.

Assiste-se caricatamente à falta de médicos nuns hospitais, preteridos em favor daqueles que oferecem melhores condições de recursos económicos e físicos. Enquanto existirem e continuarem a crescer discrepâncias destas nos hospitais do SNS, os poucos João Semana deixarão para sempre o SNS, os recém-especialistas continuarão em debandada e os resilientes não tardarão a cair, dobrados pelo esforço inglório de quem tenta manter levantado, um serviço em agonia.

Assiste-se não à falta de médicos, mas sim a uma distribuição errática dos recursos e sobretudo a uma desvalorização da classe médica que tenta a todo o custo manter viva a chama do SNS e do legado do seu fundador.