Um dos problemas das sociedades modernas é que muita gente acredita que se pode ter sol na eira e chuva no nabal. Acreditam que com os imensos meios tecnológicos ao dispor do Estado é possível manter a prosperidade coordenando a sociedade a partir deste, esquecendo que um estado é a forma mais primitiva de coordenação social e só deve ser usado para as situações mais próximas ao uso da violência e seu monopólio. Em 1920, ainda a União Soviética não tinha sido criada, e Ludwig von Mises já tinha explicado que o comunismo colapsaria porque era impossível coordenar a produção dos bens que os indivíduos mais necessitavam. Os planificadores económicos não possuíam a informação necessária para criar a riqueza que existia nas sociedades ocidentais modernas. Sem preços de mercado (inexistentes porque todo o capital era propriedade do Estado) os planificadores soviéticos não podiam saber que produzir, como produzir, onde ou quando. Nas sociedades ocidentais modernas o mesmo vai sucedendo de forma gradual à medida que aumenta o peso do Estado. Felizmente grande parte da produção de bens e serviços continua a ser processada através de mercados e é essa imensa prosperidade a que tem permitido sustentar um Estado cada vez maior e mais ineficiente.

Os economistas soviéticos sofreram o problema na pele e os esforços dedicados a contornar sem êxito a inexistência de preços de mercado são dignos de um tratado especificamente dedicado ao tema. Na prática procuravam, utilizando a imensa informação de produção e consumo de que dispunham (nem toda muito fiável), calcular preços de mercado teóricos que maximizassem o valor da produção. A tarefa resultou ser impraticável e contribuiu para o colapso económico da superpotência, como previu Mises. O problema que eles desconheciam, como Hayek explicou aproximadamente uma década depois de Mises, é que a informação que os planificadores necessitam não lhes está disponível porque só pode ser obtida pelos indivíduos que possuem um conhecimento particular único e actuam de forma local. O planificador central não pode competir com esta coordenação descentralizada na obtenção da informação necessária para formar os preços. O argumento do Hayek não foi sequer bem percebido pelos economistas da época mas, no mundo real, é bem capaz de até ficar curto. A questão não é só que o conhecimento necessário seja particular e local, é que esse conhecimento nem sequer existe à priori, é criado a cada momento pela acção individual e empresarial dos indivíduos enquanto se coordenam entre si. Um conhecimento local e particular que não existe antes de ser necessário estará para sempre oculto ao planificador que não o pode criar. Hayek chamou a este processo ordem espontânea um nome que não faz jus ao mesmo já que não existe nada de espontâneo nele. É o resultado da actuação consciente e objectiva de muitos indivíduos mas não de um desenho projectado pela mente humana. Só nesse sentido a ordem se pode considerar espontânea.

E foi um exemplo dessa ordem espontânea o que tivemos oportunidade de observar na semana passada após a tragédia de Valência. Confrontados com um Estado incapaz de operar por a) não possuir o conhecimento necessário para o fazer, b) ter acumulado ao longo de décadas más decisões que agravaram o problema c) não possuir mecanismos de correcção das más decisões até estas serem evidentes e d) sem ter sequer a capacidade de avaliar o alcance da tragédia até ser tarde demais, muitos cidadãos de Valência fizeram o que nenhum estado pode fazer eficientemente porque não é capaz de obter a informação necessária para criar esse processo do nada. Pegaram em mochilas com água e comida e, armados de vassouras, atravessaram as pontes que cruzam o Túria para socorrer os seus concidadãos da outra margem. Isto foi feito contra as indicações das autoridades que recomendavam que ninguém cruzasse o rio. Um destes cidadãos anónimos teve a feliz ideia de colocar um cartaz, escrito no dialecto valenciano, onde colocou as palavras: “sols el poble salva el poble”. O slogan tem conotações de esquerda, mas nem por isso deixa de ser uma verdade perene.

Reparem que o mais fácil e o caminho que a maioria das pessoas que criticaram e se indignaram com a actuação do Estado é afirmar que eles sabiam o que tinham que fazer e não fizeram. Mas isso não tem nenhum sentido. No governo espanhol, que eu conheço relativamente bem, existem muitos governantes pouco recomendáveis, e no da Comunidade Valenciana, que eu não conheço assim tão bem, também devem existir, mas Espanha ainda não chegou ao ponto da URSS onde milhões de pessoas foram deixadas para morrer à fome nos campos ucranianos para que a industrialização forçada do país não parasse (e a própria URSS não implodisse). A realidade é que o Estado espanhol, aos seus vários níveis, não estava preparado para o que aconteceu, nem sequer para reconhecer a verdadeira dimensão sucedia apesar de toda a tecnologia que tem ao seu dispor. Isto não serve para desculpar o Estado, serve, ou deveria servir, para desmascarar o mito, como no caso da Defesa Nacional, de que o Estado pode fazer mais que a ordem espontânea.

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Em 2004 o governo Espanhol apresentou um projecto hidrológico para acabar com as cheias naquela região que, não sendo sempre do tamanho da última, são frequentes na região. Mas nunca teve a capacidade de calcular o verdadeiro valor do projecto, como não teve para calcular o valor dos projetos alternativos para os quais esses recursos foram desviados. Para não dizer que também não foi capaz de prever as consequências de muitos outros projectos na tragédia (desmantelamento de diques, construção de vias e urbanização dos terrenos, as pessoas é que querem acreditar que sim, que o estado tem a omnipotência e a omnisciência para fazer tudo isso.

A partir daqui a tragédia, que tem uma características comuns a todas as tragédias, grandes e pequenas, começou a tomar um curso idiossincrático que também convida à reflexão. Como num primeiro momento a decisão de intervir com os serviços de urgência não foi tomada por ninguém no Estado por ninguém no Estado ter tido a capacidade de perceber a magnitude da tragédia, nos dias seguintes assistiu-se ao espectáculo embaraçoso de ninguém, nem no governo local nem no nacional, se mexer para fazer nada para aliviar o sofrimento da população, porque o primeiro que o fizesse estaria a incriminar-se por não ter feito nada antes. Como disse antes, Espanha ainda não é a União Soviética no que diz respeito a cometer atrocidades contra a própria população como lógica de sobrevivência política, mas já é um Estado onde muitos políticos estão dispostos a negar o dever de socorro à população se disso depende a sua continuidade no cargo e tanto Mazón como Sánchez perceberam que o primeiro que o fizesse estava a assumir a responsabilidade de não o ter feito antes. Foi por isso que só com o clamor da população de toda a Espanha e as imagens da tragédia nas televisões os auxílios foram sendo enviados, muito depois de a ordem espontânea lá ter chegado. Ainda assim, há que admirar (no mau sentido) a capacidade de Pedro Sánchez de resistir-se a prestar essa ajuda e só o fazer depois de deixar claro perante toda a população que não o fez antes porque o governo de Valência não lhe pediu.

Finalmente, cinco dias depois, imagino que com infindáveis horas de negociações pelo meio os dois governos, nacional e regional, conseguiram pactar ir em simultâneo visitar a população. As visitas dos políticos aos palcos das tragédias fazem parte da liturgia moderna. Analisando friamente, não vão lá fazer nada que objectivamente contribua para resolver a situação. Mas o mesmo não pode ser dito do ponto de vista subjectivo. Deste ponto de vista, que numa hora de dor, sofrimento e desamparo os políticos apareçam a confortar as pessoas é positivo para as vítimas porque sentem que não só não estão sozinhas, que todo o país sofre com elas. Além disso, levam esperança na forma de promessas, normalmente explícitas, de que o Estado vai ajudar economicamente a resolver a situação. Para os políticos estas acções têm o benefício posterior de uma fotos que ajudam sempre à reeleição. O caso superlativo em Portugal foi a foto de um senhor que tinha perdido a casa, com todos os pertences, a chorar dentro de um carro enquanto o Presidente da República o tentava consolar. O homem, de seu nome Manuel Nascimento já morreu, a casa ninguém a reconstruiu porque as ajudas do Estado não chegaram, ou não chegaram a tempo, mas a foto correu o mundo.

Só que estas coisas têm que ser feitas a quente. Cinco dias depois da tragédia não. Cinco dias em que a população de Paiporta trabalhou duro entre a lama para retirar escombros e limpar ruas e casas. Cinco dias com a dor da morte de vizinhos, familiares e amigos, bem presente na alma e o cheiro dos cadáveres em decomposição a entrar pelas narinas. Cinco dias em que a única certeza na mente era a da ruína económica que se instalou. Cinco dias com o frio, a sede e a fome a fustigar os corpos cansados de cinco noites em claro a defender-se de assaltos de grupos de salteadores. Cinco dias em que a única presença visível do estado foi a passagem do esquadrão de acrobacias militares da Força Aérea a deixar um rasto com as cores da bandeira nos céus. Cinco dias depois da tragédia a magia já não funciona. E menos se, para chegar ao local da tragédia, finalmente se despeja a estrada de obstáculos para que uma comitiva de trinta carros oficiais possa entrar na povoação, até então incomunicada, para fazer fotos e discursos de circunstância.

Em Espanha a figura mais popular é a do rei, e tanto Mazón como Sánchez pensaram que estariam a salvo da indignação popular debaixo das saias do monarca. Mas desta vez nem o rei se salvou da ira popular, ainda que esta se reduziu bastante quando Pedro Sánchez meteu o rabinho entre as pernas e fugiu. O rei e a rainha encararam a multidão e, apesar de viver momentos tensos, estiveram à altura da situação. Mazón, prudentemente calado ao lado do rei para não reacender a fúria popular pelo menos campeou a tempestade, ainda que dificilmente escapará com vida política do episódio. Sánchez, ao seu estilo, alegou uma agressão da qual a polícia ainda não encontrou imagens (o pau que, aparentemente, o atinge nas costas não passou nem perto, como se pode ver noutra imagem filmada desde uma das varandas de um edifício). Mas não perdeu tempo em colocar em circulação o boato de que não foi a população local quem lhe atirou lama mas elementos da “ultradireita” que se deslocaram ao local de propósito para excitar a população. Esta semana mandaram uma unidade de SWAT da brigada de elite antiterrorista para deter três indivíduos que pontapearam o carro de Pedro Sánchez. Os perigosos terroristas são todos habitantes da zona, vítimas do temporal. Um carro da polícia local teria sido mais que suficiente para os conduzir à esquadra mais próxima. Se só o povo pode salvar o povo, mas ao povo chamamos “ultradireita”, a consequência lógica a que o povo chegará mais cedo ou mais tarde é que só a “ultradireita” pode salvar o povo.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.