As alegações do Ministério Público no Tribunal de Família e Menores de Famalicão, que incluem a possibilidade de  retirar aos pais a responsabilidade de educar os filhos, entregando a tutela ao director e à psicóloga do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco, são um misto de prepotência orwelliana, delírio kafkiano e fanatismo ideológico. Ou, como diria Camilo Castelo Branco, o involuntário patrono do Agrupamento de Escolas em causa, “uma imbecilidade moral”.

O caso é conhecido. Paula e Artur Mesquita Guimarães têm dois filhos menores. Não são terraplanistas. Antes, contestam o “terraplanismo” do Estado. Ou melhor, o “terraplanismo” veiculado por um Estado que, cedendo à pressão de lobbies minoritários, inclui no curriculum de uma disciplina obrigatória uma teoria experimentalista e de duvidosa cientificidade sobre a sexualidade humana. Assim, a par da segurança rodoviária e do bem-estar financeiro, laboral, ambiental e animal, apresenta-se a docentes e menores a total dissociação entre o “sexo atribuído à nascença” e o género escolhido ou a escolher como se de uma incontestável verdade científica se tratasse.

Por objecção de consciência ao que consideram uma distorção da realidade por manipulação ideológica e uma agressão psicológica de consequências incalculáveis, os Mesquita Guimarães acharam por bem que os filhos não frequentassem a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento: uma vez que era de “fé” e não de Ciência que se tratava, a referida disciplina, tal como a de Religião e Moral, deveria continuar a ser facultativa, como o fora na sua génese.

Numa atitude de coragem, os pais e a família têm enfrentado as consequências da sua decisão e dos princípios que defendem. O Ministério da Educação tem admitido a transição condicional de ano dos dois rapazes, que são excelentes alunos, enquanto aguarda, prudentemente, o fim dos processos judiciais.

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Agora, o Ministério Público veio alegar que a atitude destes pais, verdadeiros “foras-da-lei” arvorados em “juízes em causa própria”, é de “coerção emocional”, pelo que “a única medida que se apresenta como do superior interesse dos jovens” para “definitivamente afastar a situação de perigo existencial dos mesmos” é a retirada da tutela paternal em horário escolar. Livres da tutela dos pais, os cidadãos menores passariam assim a ser reeducados pelo Estado e idoneamente tutelados pelo Director e pela Psicóloga do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco de Famalicão.

A derrota do marxismo-leninismo

Nos anos 90 do século passado, o comunismo desapareceu da Europa, com o fim dos regimes inspirados no materialismo científico marxista-leninista. Por efeitos perversos, a utopia marxista tinha gerado sociedades contrárias à anunciada libertação dos homens das cadeias da opressão; sociedades totalitárias, concentracionárias, miseráveis, desiguais, comandadas por uma oligarquia de aparatchiques privilegiados, servidos por polícias secretas e Gulags – e sempre defendidas por intelectuais orgânicos, autores e glosadores de narrativas de cobertura.

À falta de União Soviética como Roma e de Proletariado como povo crente, os marxistas sobreviventes, mostrando grande “resiliência” (como agora se diz), foram-se reciclando, reinventando um novo Despertar.

Esse Despertar assentava nos trabalhos dos heterodoxos que, tendo tomado consciência da ruína progressiva da URSS a partir do final dos anos 60, se tinham lançado por vias marginais em novas aventuras e utopias.

Alguns perfilhavam os “marxismos imaginários” que Raymond Aron tinha já elencado; outros não. Gyorgy Lukacs (1885-1971), Ernst Bloch (1885- 1977) e Louis Althusser (1918-1990), por exemplo, procederam ao branqueamento da teoria tradicional, dissociando, em prestidigitação bem-sucedida, o “imorredoiro ideal” dos seus ocasionais “desvios” e “passos em falso”. Desvios como os protagonizados por Estaline, Mao, Enver Hoxha; “passos em falso” como os dados pelos chefes das Secretas, responsáveis pela eliminação de milhões.

E assim o Marxismo, a eterna boa causa, escapou à infâmia do Terror soviético e da Revolução Cultural maoista, num processo seguido pelas várias esquerdas radicais, agora em aliança objectiva, ou mesmo subjectiva, com o “grande capital globalista”.

Abandonando progressivamente a luta de classes – até porque as classes trabalhadoras europeias e americanas os tinham já abandonado – os neomarxistas voltaram-se para outras desconstruções, para outras expropriações e para outros binómios de opressores/oprimidos – mais Maio de 68, mais marquês de Sade, menos “proletários de todo o mundo” e mais “burgueses de todo o globo”.

Deus, as religiões, as pátrias e as famílias continuavam a ser os grandes inimigos, mas para expropriar cabalmente o homem, senhor da vida e da morte, da “tirania da transcendência”, havia ainda que expropriá-lo da tirania da comunidade de origem, da identidade de origem e até da biologia de origem. O capital e o capitalismo podiam esperar, até porque tinham deixado de ser o inimigo. Pelo contrário, o hipercapitalismo revelava-se um poderoso aliado no empoderamento de “minorias oprimidas” sortidas e dispersas, sobretudo rácicas e sexuais, e na sua reorganização em comunidades de “activistas” contra os vários “opressores”.

Com a crise da URSS, entre a ofensiva económica neo-liberal e o Estado-providência, os marxismos ocidentais tinham entrado em decomposição, em França, em Espanha, em Itália. Depois do jihadismo e da crise de 2007-2008, a renovação conservadora do reaganismo e do thatcherismo deu lugar a formas de resistência mais identitárias, mais nacionalistas e mais sociais, com novas fronteiras e caudilhos. Das Américas à antiga Europa comunista.

Havia que tocar a rebate às Luzes e ao Progresso em perigo.

Mas que Luzes e que Progresso? A propriedade, que outrora era “um roubo”, deixava aparentemente de o ser, e “a terra a quem a trabalha”, como palavra de ordem, já não encontrava eco. Os operários que restavam abandonavam as fileiras. A desconstrução das “construções sociais e das identidades sociais impostas” e o cancelamento sado-masoquista de uma história ocidental de opressão patriarcal, racial e sexual eram agora o cerne da luta.

As novas vanguardas

Abandonando, com desgosto para os comunistas tradicionais, a luta de classes e a justiça social, os construtores e adeptos da ideologia de género e de outros marxismos imaginários criaram o princípio da libertação dos homens, das mulheres e de todos os não binários (espero com esta fórmula não deixar ninguém de fora) da própria Biologia. E para distorcer a realidade, começariam por distorcer a linguagem. A ideia prometeica da libertação final dos seres vivos, depois de os emancipar de Deus, das fronteiras, das famílias, ia agora mais longe, atingindo a própria fisiologia, isto é, o próprio corpo. Marx e Engels – que, prevendo algumas inclusões a que esperavam não vir já a assistir, trocaram opiniões e expressões extremamente incorrectas sobre o assunto – não teriam nunca sonhado que se pudesse ir tão longe. Não somos o nosso corpo mas somos donos dele, somos seus proprietários e pudemos usá-lo, ignorá-lo ou refazê-lo segundo a nossa própria vontade e ao sabor da nossa própria imaginação identitária.

Partindo de uma primeira revolta contra a tradição falocrática ou patriarcal, de uma normal e justificada revolta contra um longo rol de abusos de “homens” e “patrões”, a moderna ideologia de género criou, até nas suas próprias fileiras, uma dialéctica de zelotas de um transformismo insaciável, em que a reformulação crítica do que antes era ortodoxo desemboca numa obsessiva busca de um universo sem limites físicos nem fronteiras.

O mais curioso e perigoso é que esta dissociação da realidade biológica, esta caótica cavalgada por renovadas miragens, estes ideológicos passeios pelos assexuados bosques do género, em voltas que fariam o Dr. Freud parecer uma púdica militante da Acção Católica dos Anos 50, conseguiram sair do mundo das academias de vanguarda.

Este mundo elitista, construído para acomodar uns poucos NBGP (Non-Binary and Genderqueer People”) libertos da sua realidade MAAB (Male Assigned at Birth) ou FAAB (Female Assigned at Birth) e para denunciar os muitos “fóbicos” que os aceitam como excêntricos, quer agora invadir o mundo real como “novo normal”. O mundo daqueles que, tolerando estas diferenças e fantasias, não querem ser mentalmente colonizados por elas ou manipulados por uma  nova “vanguarda estratégica”. O mundo dos que pretendem continuar a exercer o direito de educar os seus filhos sem imposições ideológicas disfarçadas de “Ciência”, de “Tolerância”, de “Desenvolvimento” e de “Cidadania”.

Retomando o conceito marxista de ideologia como “falsa consciência” e da sua própria doutrina como a verdadeira Ciência da História e da Sociedade, os partidários e entusiastas da ideologia de género – e de outras ideologias do mesmo género – dizem que o que defendem não é Ideologia: é Ciência.

Assim, para suprimir a Biologia como critério dominante para a determinação do género masculino ou feminino, socorrem-se da vastíssima produção dos seus teóricos, mergulhando-nos num mundo livresco em que um livro refere autoritariamente muitos outros livros, quase sem passar pela experiência concreta e pela natureza das coisas.

O problema, entretanto, não é que os pioneiros desta nova utopia queiram ter o seu mundo, que a muitos parecerá singular e absurdo, mas que, nas nossas latitudes euroamericanas, é admitido e aceite; o problema é que, à semelhança dos marxistas-leninistas de há cem anos, o queiram impôr como vanguarda pioneira e esclarecida à maioria ignara dos deploráveis que somos, exigindo-nos, não só respeito e tolerância, mas admiração e devoção e até um novo abecedário. E interditando e perseguindo os dissidentes.

O problema é que pretendam subjugar os mais jovens, lançando-lhes, desde o início da vida consciente, dúvidas e problemas de identidade – e que o façam protegidos pela cultura laxista de um Estado que, à imagem destas novas esquerdas, abandonou as causas sociais da justiça, da igualdade e da solidariedade pelas subsidiadas delícias de um corrosivo activismo de salão.