Não sou conservador, não sou-democrata-cristão, nem milito no CDS. Mas para mim faz sentido que haja em Portugal uma direita democrática plural que equilibre uma esquerda plural. Caso contrário este país é um país coxo. E o CDS desempenha um papel imprescindível neste equilíbrio.
Simpatizo com muita gente desse partido, que é um dos partidos fundadores da democracia portuguesa. Não há praticamente ninguém no meu partido (o PSD) que não tenha amigos no CDS e vice-versa.
Quando há vinte anos eu liderava uma secção concelhia do PSD (a Amadora) esforcei-me por estabelecer localmente uma coligação política entre os dois partidos que até aí tinham tido uma prática incompreensível de costas voltadas e até, de alguma acrimónia. Claro que a amizade que me unia ao líder local do CDS facilitou as coisas. E tanto estávamos certos na altura, que esta coligação se tem mantido ali durante os últimos 20 anos, aguentando os altos e os baixos da política, sem ninguém dos dois partidos ter perdido a sua identidade, sem diluição da natureza de cada um. E ainda agora essa coligação, mais alargada, obteve um resultado eleitoral francamente positivo, no qual o CDS prestou um contributo fundamental. Aliás foi o líder do CDS que deu a cara e o corpo às balas na hora da apresentação da nossa candidata à presidência da Câmara e foi ele quem andou nas ruas da Amadora a lutar pelo melhor resultado eleitoral que aí se obteve nos últimos 20 anos.
O PSD e o CDS têm, no entanto, uma natureza distinta, ainda mais evidente em momentos de crises internas. Enquanto no PSD as rupturas de liderança são sobretudo eventos simbólicos de mudança de chefia, feitas por recomposição e sobreposição de parte do pessoal político dirigente anterior que sobrevive à queda ritual do antigo César, já por sua vez no CDS as rupturas de liderança são metamorfoses políticas colectivas, que operam por expurgo do pessoal político da direcção anterior. Se a política fosse jardinagem no PSD imperaria a enxertia. No CDS imperaria a poda.
Não é por acaso que boa parte dos antigos líderes do CDS saíram do seu partido após as suas respectivas derrotas e o consequente fim das suas lideranças (Diogo Freitas do Amaral, Francisco Lucas Pires, Manuel Monteiro) arrastando com eles parte substancial dos seus dirigentes e apoiantes.
Esta guerra no CDS não é, portanto, o primeiro momento de uma guerra fratricida no CDS. Nem esta é a primeira vez que um líder do CDS enfrenta uma tentativa permanente e incessante de assassinato político junto da opinião pública.
Os partidos políticos são também instituições autorreferenciais que se moldam de acordo com a sua história. E a história do CDS é feita de rupturas, de dissidências irreconciliáveis, de dramas existenciais. E é feita, sobretudo, de resistência contra as inevitabilidades ditadas pelo comentariado do regime.
Ainda me recordo com muita nitidez do que se disse de Manuel Monteiro quando este alcançou a liderança do CDS, aos 29 anos: ele era um radical, um miúdo, um nacionalista anti-europeu, praticamente um fascista, uma pessoa com quem ninguém com alguma importância poderia conversar. Manuel Monteiro fazia mesmo o consenso do regime na altura: ele era a extrema-direita, uma persona non grata, desde o PSD até ao PCP. E assim foi até passar a ser visto com alguma simpatia sempre que era vítima de cada nova deslealdade de Paulo Portas.
Quando Paulo Portas tomou conta do CDS e empandeirou definitivamente Manuel Monteiro e o seu grupo, escorraçando-os do partido, Paulo Portas passou então a ser o objecto de ódio preferencial da intelligentsia nacional. E isto acompanhou-o sempre: Paulo Portas só deixou de ser odiado, vilipendiado e causticado quando saiu pela primeira vez da liderança do CDS (no breve e calculado interregno de José Ribeiro e Castro, que foi boicotado sem dó nem piedade pelo grupo órfão de Portas) e, depois da segunda saída. Finalmente, e só porque já não está na política activa, é que é agora um senador respeitado por todos.
Diga-se em abono da verdade que a relação do CDS de Portas com o PSD nunca foi isenta de resistências, contrariedades, mal-entendidos. Para se ter formado a primeira maioria de que foi co-responsável, e que permitiria há vinte anos o governo de José Manuel Durão Barroso, foi preciso ter-se vencido naquela época as resistências iniciais e ressentimentos do Prof. Aníbal Cavaco Silva, e dos seus principais apoiantes, tendo-se feito assim entrar a Dra. Manuela Ferreira Leite no governo como caução do cavaquismo, conferindo-lhe a posição simbólica e protocolar de número 2. Paulo Portas foi vetado como Vice-Primeiro Ministro e foi remetido apenas à condição de número 3 daquele governo. Foi o preço da sua entrada na órbitra do governo, e isto depois da sua rápida evolução de euro-céptico para “euro-calmo”. Foi igualmente preciso vencer a desconfiança das bases do PSD à época, coisa que se fez distribuindo então uma catrefada de secretarias de estado por uma boa parte dos dirigentes distritais do partido.
Na segunda vez, na segunda maioria, já sob a liderança de Pedro Passos Coelho, não nos esquecemos do arrastar de pés, de algumas facadinhas nas costas, e da enorme traição do irrevogável pedido de demissão, precisamente no momento mais frágil daquele governo. Todos nos lembramos como Pedro Passos Coelho reagiu magistralmente: resistiu, meteu Portas no bolso, e aguentou até ao fim, tendo concluído a legislatura, terminado a troika, e ainda logrou vencer as eleições, já com o CDS coligado em listas conjuntas, e sem ter tido de ir a votos.
Aliás é preciso não esquecer que a verdadeira crise do CDS começou precisamente aqui. Com o Irrevogável. Desde esse momento que o CDS perdeu parte substancial do capital político que tinha granjeado. Foram “linhas vermelhas” sucessivamente anunciadas e abandonadas, foi o fim do feriado do 1º de Dezembro, e foi igualmente a demonstração de incompetência de alguns dos seus colaboradores, antigos ministros e secretários de estado, na época particularmente zurzidos pela esquerda cultural e pelo comentariado oficial. Curioso, portanto, que sejam agora esses antigos dignitários do portismo, como António Pires de Lima ou Adolfo Mesquita Nunes, que sejam agora retratados pelo mesmo comentariado oficial que os verberava, como as referências agora incontornáveis de um CDS outrora sofisticado, sedutor, culto e civilizado, por contraste com o presente caricatural Chicão, que é apresentado todos os dias como um imaturo, ou um desvairado, ou ainda na melhor das hipóteses, como um tipo medroso com medo de perder congressos.
Admito com sinceridade que não sou um espectador neutral da crise do CDS. Sou amigo de algumas das pessoas que disputam o seu destino e que se defrontam num combate interno duro e certamente muito doloroso. Mas sou igualmente amigo pessoal e incondicional do Francisco Rodrigues dos Santos.
Mas não é a minha conhecida amizade e cumplicidade com o Francisco que me ditam a obrigação de testemunhar o meu apoio à sua pessoa. É acima de tudo a consciência de que ele foi, e é ainda, a única solução possível para salvar o CDS.
A verdade é que nenhum líder do CDS agradará à esquerda e ao comentariado oficial instituídos. No CDS só agradará à redação única aqueles que não sendo líderes do CDS, os combatem na perspetiva de os substituir. Existe um equívoco em que os militantes do CDS só incorrem se quiserem: o de procurar agradar a quem nunca os irá apoiar.
Mas não se diga que não considero a mais-valia dos principais rostos mediáticos do CDS que agora o estão a destruir numa estratégia de terra queimada. No entanto a sua mais-valia, no actual contexto político que antecipa uma autêntica MUDANÇA TECTÓNICA do sistema de partidos, constitui apenas uma ilusão de popularidade. Os tempos hoje são transformacionais. São mesmo Novos Tempos aquilo que aí vem. A velha política está a soçobrar.
Aos militantes e eleitores do CDS que ainda resistem apenas resta o caminho de levantar o seu partido a partir dos seus valores fundacionais ou, pelo contrário, claudicar perante o pânico induzido por um comentariado que sempre lhes será hostil. Ora o CDS precisa neste momento de fazer a escolha mais racional do ponto de vista do interesse na sua própria sobrevivência.
Senão vejamos: o portismo estava esgotado. Paulo Portas era insubstituível e, portanto, incapaz de designar herdeiro. E a sucessão de Assunção Cristas foi um fracasso histórico. Mas Assunção falhou mais por culpa dos viúvos de Portas, que a condicionaram sempre, do que propriamente por causa dela mesma. E basta recordar: quando António Pires de Lima saiu do governo não saiu verdadeiramente da política, não perdeu a ocasião de continuar a influenciar, e quando lhe aprouve decidiu assassinar politicamente Assunção Cristas na capa de um Expresso, no Verão de 2019, liquidando assim sua tentativa de autonomização política quando da crise estival dos professores de 2019. A partir daí Assunção nunca mais se levantou. Nuno Melo, o eterno candidato a líder, colapsou nas eleições europeias com o pior resultado eleitoral obtido pelo CDS em eleições para o Parlamento Europeu, e escassos meses depois a liderança de Assunção Cristas acabou com um partido reduzido a 5 deputados, e com o pior resultado eleitoral da sua história, completamente falido e desmoralizado.
Mas outro dos maiores responsáveis pelo fracasso da linha sucessória do portismo e da anterior direcção de Assunção Cristas tem também um nome: foi precisamente o Adolfo Mesquita Nunes. É preciso que se diga com frontalidade que o primeiro grande golpe dado no partido foi dado a partir do momento em que o seu número 2 abandonou o barco tormentoso da política para ir ganhar dinheiro na GALP.
Mas outros barões são também responsáveis, à escala da sua relativa importância: Nuno Melo preferiu sempre o conforto da Europa a ter de meter as mãos na massa imaterial da política em lugar da massa salarial de Bruxelas. Luís Pedro Mota Soares entrou humilde e acessível no governo de vespa e saiu de lá impante e senhorial montado num Audi A7 de três mil cm3 de cilindrada. E João Almeida, o amigo que lhe segurava o capacete quando ele tomava posse como ministro, foi mesmo a única alternativa que estes barões apresentaram aos militantes do seu partido no último Congresso.
Por isso foi relativamente fácil a Francisco Rodrigues dos Santos ter ganho a liderança do CDS: ele era uma nova possibilidade enquanto os outros já eram o fim da linha. E ainda é. Porque a verdade é esta: esta linha sucessória do portismo já era incapaz de apresentar alguém de nível que não fosse um refugo dos últimos 20 anos.
E tudo tem um fim.
E foi esse fim que este grupo se recusa a aceitar. Porque entendem que o partido só poderá existir se for para ser deles. Vai daí este número de desespero de Adolfo Mesquita Nunes, de António Pires de Lima, e de outros: sair e matar o seu partido é mesmo a única carta que agora lhes resta.
Pessoalmente considero o Adolfo Mesquita Nunes uma das grandes personalidades da Direita portuguesa. É mesmo um político e um orador brilhante. Gosto dele. É simpático. É interessante. Mas tanto o Adolfo como alguns dos seus amigos sempre laboraram num segundo equívoco, este talvez o mais grave em termos de apreciação política. É que o CDS não teria qualquer viabilidade se se transformasse naquilo que eles queriam. Aliás o CDS só pode ser viável politicamente se o for precisamente ao seu arrepio. Isto é: o CDS não pode ser um partido liberal e progressista. Nem tão pouco poderá ser o partido dos amigos e dos negócios.
O CDS para encontrar um lugar para sobreviver tem de ser um partido CONSERVADOR e DEMOCRATA-CRISTÃO.
Por isso mesmo o lugar adequado do Adolfo e de Pires de Lima, e de outos, será o de incorporarem uma Iniciativa Liberal 2.0. Ou até talvez ingressarem de armas e bagagens no PSD – por natureza mais catch all e inclusivo e mais permeável ao permanente debate/tensão ideológico interno.
Admito que o caminho de Francisco Rodrigues dos Santos é agora muito estreito: o problema maior nem é o da controvérsia sobre as suas decisões táticas (discutir datas de congressos e prazos de eleições é afinal coisa de que ninguém se lembrará daqui a um mês). Não. O problema maior é que ele herdou um CDS sem dinheiro e completamente falido, e tem sido sujeito desde a primeira hora, a uma guerra constante e sem piedade, inclemente, desumana e sem quartel, por parte de um grupo que funciona em lógica de clube fechado e acirrado, e que não lhe confere um módico de misericórdia nem de tréguas pessoais.
Mas ainda é muito cedo para se escrever o obituário político de Francisco Rodrigues dos Santos.
Ele já fez muita coisa com o pouco que herdou: tem estado a pagar as dívidas dos outros. E conseguiu que o seu partido chegasse pela primeira vez na história a um governo regional. Pelo contrário, se os seus opositores mandassem no CDS é clarinho como água que o PS e a família César continuariam ainda a governar os Açores ao fim de 26 anos. Além disso Francisco Rodrigues dos Santos decidiu algo que foi muito sensato: evitou ir atrás das teses dos seus rivais e assim poupou o seu partido a ter de andar a competir com o Tiago Mayan Goncalves nas televisões e no Twitter pelo penúltimo lugar nas eleições presidenciais, antes ganhando o quinhão de fazer parte da ampla e actual maioria presidencial.
Além disso os resultados eleitorais do CDS nas últimas autárquicas foram absolutamente positivos. O CDS é a quarta força política autárquica nacional, com autarcas eleitos em todas as regiões do continente e nas ilhas. Foi o único partido político a não perder uma única câmara ou freguesia que já detinha. O CDS tem mais vereadores, deputados municipais, e presidentes de junta e autarcas nas assembleias das freguesias, do que Chega, Iniciativa Liberal, Bloco e PAN têm todos juntos. O CDS tem agora o Vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mais dois vereadores responsáveis por parte substancial das áreas sociais de governação da cidade. O CDS mantém agora todas as câmaras municipais a que preside com maiorias absolutas.
E é mesmo precipitado dizer que o CDS já morreu. Apesar de tudo o CDS tem ainda uma possibilidade, embora muito difícil e muito agreste.
Uma possibilidade que pode consistir num recomeço de Francisco Rodrigues dos Santos, na rua, em eleições, que é onde ele se sente bem. Eu já o vi em campanha e posso dizer que ele é melhor em campanhas que quase todos na política portuguesa.
E essa possibilidade do CDS não pode ser outra que não seja ir ao encontro daquilo que os seus eleitores afinal sempre desejaram. Sem fantasias liberais nem pulsões extremistas. Sem grandes tentações de progressismo, mas também sem grandes excitações reacionárias inconsequentes. Com um firme europeísmo mas aliado ao tradicional discurso patriótico e atlântico da Direita.
O CDS tem um mercado eleitoral enorme e potencial: é o eleitorado da Igreja Católica, do mundo rural, dos monárquicos, do apego às tradições, da caça, da pesca, e da tauromaquia, do pequeno municipalismo do Norte, das IPSS, do Banco Alimentar. Dos jovens betos, dos movimentos laicais, da rede dos colégios privados, dos militares. Dos numerários e supranumerários da Opus Dei. O caminho do CDS não pode ser um caminho pseudomoderno e liberal: para isso já lá está o PSD e já lá está também a Iniciativa Liberal.
Mas também não pode ser o caminho do Chega e da contrarrevolução contra o sistema: o CDS tem mais de 40 anos de história e faz parte do sistema democrático. E os conservadores portugueses não gostam de confusões, nem de barulho, nem de misturas. Gostam de educação e de decência e valorizam muito a compaixão. Assim enquanto o caminho de crescimento do Chega é o caminho do eleitorado despeitado e ressentido dos subúrbios desqualificados de Lisboa e do Porto, da Margem Sul, e do antigo eleitorado comunista do Alentejo, o caminho de afirmação do CDS terá de ser o de um partido conservador, e católico, e mais nacional, menos euro-zeloso, que rejeita o progressismo cultural da esquerda, que desconfia do cosmopolitismo, e que desdenha da total submissão da vida aos negócios, na linha social ensinada pela Igreja Católica portuguesa.
Há um povo à direita do PSD que pensa assim. Que se sente assim. E estas pessoas têm igual direito de cidade e igual direito à representação política. Essas pessoas que se revêm na Doutrina Social da Igreja e nas posições da Conferência Episcopal Portuguesa, que se sentem bem em democracia mas que a consideram actualmente insatisfatória e em risco, merecem ter um partido político que as represente.
Aquilo que o CDS precisa agora é de sobreviver a estas semanas. E de seguida mobilizar todas as pessoas a que os seus barões nuca prestaram atenção.
Em suma: aguentar, voltar à estrada, e reconstruir a sua relação com o povo católico.
Este é, pois, o desafio de Francisco Rodrigues dos Santos. Mas não será fácil. É mesmo muito, muito difícil.
Mas este é o único caminho. É o caminho da autenticidade. Não é o caminho da ilusão dos think tanks liberais, dos fóruns de fãs da Eurovisão, do Linhas Vermelhas e do Eixo do Mal, e o caminho ditado pela redação única do Público/Expresso.
Um abraço ao Francisco.