Nestes dois meses de confinamento e gradual desconfinamento muitas entidades públicas e privadas se prestaram a ajudar os artistas de espectáculo, que vivem essencialmente do contacto com o público na sua profissão. A Fundação Calouste Gulbenkian apoiou artistas com espectáculos cancelados, a GDA-Gestão dos Direitos dos Artistas abriu várias linhas de financiamento aos seus cooperadores e a SPA-Sociedade Portuguesa de Autores aos seus associados, o Ministério da Cultura fez um concurso extraordinário para distribuir mais de 1 milhão de euros por novos projectos colectivos ou individuais, várias câmaras municipais se debruçaram sobre o problema da Cultura, etc. o que mostra que os artistas, ao contrário de outras classes profissionais também seriamente afectadas pelo confinamento, se juntaram e pressionaram todas as instâncias ao seu alcance para não serem esquecidos na sua sobrevivência.

No entanto pelo caminho ficou o TVFest, um malogrado festival que serviria para apoiar músicos e técnicos da música ao vivo e entretenimento, o que levanta algumas questões interessantes em relação à percepção sobre o que é cultura, o que se entende por apoios à cultura e como se decide a distribuição de recursos.

O festival televisivo apresentava um esquema simples de apoio de um milhão de euros pelo Ministério da Cultura, depois de o mesmo Ministério já ter disponibilizado fundos extraordinários para as artes do espectáculo e artes visuais através de concurso simples. O TVFest ia promover uma série de espectáculos na televisão pública, aberto a artistas de música ligeira e popular que dependem dos concertos como fonte de rendimento, para entretenimento dos espectadores confinados em casa. Uma personalidade televisiva – Júlio Isidro — indicava os primeiros três artistas a participar, estes nomeariam os seguintes e assim sucessivamente. O festival mal saiu das primeiras gravações pois a reacção dos profissionais e intelectuais das artes foi demolidora, tão violenta que fez a ministra reconsiderar o projecto e cancelá-lo, ou suspendê-lo sem data à vista de concretização. O argumento de base foi a contestação do método de selecção dos participantes, mas logo ficou claro o desagrado pela inclusão de artistas e música da cultura pop (música rock, fado, pop, rap, ou qualquer outro tipo não classificável como erudita) no acesso aos apoios públicos ou pela incursão dos media e entretenimento no que seria a área protegida da alta cultura e dos seus valores em defesa e promoção da Arte.

O apoio público às artes é uma prática institucionalizada na Europa desde o período pós-segunda guerra mundial, como forma de serviço público a uma população que se queria consciente dos seus valores culturais e cívicos. Em Portugal os apoios começaram por consolidar o Teatro no pós-25 de Abril, estendendo-se depois às outras artes, música clássica, dança, artes visuais, arquitectura. Fora dos apoios ficava a cultura pop e de entretenimento que tinha encontrado um público cada vez mais fiel e extenso, o que lhe possibilitava ampla subsistência no mercado. Paralelamente a cultura erudita perdia público nas suas manifestações contemporâneas de música, dança ou mesmo teatro experimental.

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No final dos anos 90 o panorama acentuou-se: internacionalmente o mercado do cinema, do audiovisual, da música ligeira e de outras formas culturais expandiu-se enormemente, no sentido da globalização. O considerável produto económico das transacções de bens e produtos culturais a nível global gerou alguma surpresa quando começou a ser colocado sob perspectiva nas estatísticas, e analisado por organizações e peritos. Afinal a cultura tinha capacidade para ser rentável e não estar eternamente dependente dos subsídios do Estado, ou do discurso fatalista dos seus intervenientes. Uma nova conceptualização inundou os relatórios económicos mundiais, das Nações Unidas ou da UNESCO, da União Europeia e dos governos locais, a conceptualização da cultura como um conjunto de indústrias culturais ou criativas. Nelas se englobava a totalidade do mundo cultural, todas as actividades, funções, produtos e serviços culturais possíveis, em áreas como o cinema e audiovisual, fotografia, design, arquitectura, música ligeira e erudita, artes cénicas e visuais, e ainda marketing, vídeo e videogames, media e publicações, edição, museus, galerias, bibliotecas, moda ou artesanato. Sem que a alta cultura se apercebesse, o seu papel deixara de ser central, ficando relegado para uma subespécie de produção criativa. A cultura passou a ser vista como uma área de crescimento acentuado, geradora de emprego e impelindo Governos a reconhecer a criatividade como o motor de inovação competitiva no mundo globalizado.

Na prática o processo não é assim tão simples, existem grandes polarizações de mercado a nível mundial e as indústrias criativas emparelham actividades e funções que vão desde o nada rentável até ao muito rentável. A listagem de actividades, produtos e serviços varia ligeiramente entre as grandes instituições internacionais (UNESCO, UNCTAD, WIPO, etc.) que empregam os seus próprios enfoques de análise ao mundo criativo catapultado por inovações digitais e tecnológicas. Várias fronteiras se esbateram na conceptualização do novo fervilhar global, a começar pelo que seria a distinção entre profissional e amador, ou no que seria encarado como entretenimento em oposição a cultura e arte. E como área de marcada presença individual e de organização por projectos, abunda a precariedade laboral em todos as actividades.

A ênfase de preocupação das políticas culturais deixou de estar centrada na alta cultura, para dedicar alguma atenção com a contribuição das indústrias criativas na criação de emprego e no crescimento económico. Uma mudança que penetrou também a organização dos próprios apoios públicos, quer europeus quer nacionais: sensivelmente a partir do início do século as entidades concorrentes a apoios tiveram de começar a provar a sua sustentabilidade económica (no caso da Europa Criativa), apresentar projectos viáveis e geradores de receitas próprias, e a envolver-se numa série de compromissos desde a promoção de talentos jovens, desenvolvimento e captação de públicos, educação ou inclusão. Não mais existiram os apoios dos anos 70 ou 80, com protocolos directos entre o Estado e as entidades, ou como quantias agraciadas a alguns artistas conhecidos em projectos artísticos pessoais. A época em que o apoio económico era disponibilizado em nome da alta cultura e difusão da própria arte a alguns nomes sonantes, ou a outros indicados por esses, teve o seu termo quando foram introduzidos apoios a projectos por concurso, por via da democratização no acesso aos fundos disponíveis.

O TVFest teria todos os ingredientes para ser um sucesso: uma manifestação cultural através dos media com grande alcance de público, numa altura em que era premente apoiar artistas e levar alguma distracção às habitações onde a população se encontrava confinada. O método de escolha dos intervenientes não era assim tão distante do usado nas artes eruditas, onde está provado pela investigação serem fundamentais as redes de conexão para convites de integração em projectos, entendendo-se por redes de conexão os amigos, conhecidos, conhecidos de conhecidos e por aí adiante. Raros são em Portugal os concursos ou audições anónimas para integrar produções de teatro e dança, ou grupos pequenos de música. As audições são mais frequentes nas grandes orquestras e companhias de dança, mas aí são completamente internacionais e de um nível de exigência superior. Pois se nos grupos de teatro, dança, pequenos grupos de música, e outros, a forma mais instintiva e directa de angariação de membros é a do contacto directo, porque não estabelecer convites entre todos, começando por um nome conhecido do entretenimento televisivo?

Porque os círculos da cultura ainda se ressentem de terem de se sujeitar a concursos para se conseguir financiar, com apoios que vão delimitar a sua própria produção e campo de acção, porque não concebem que fora da sua influência intelectual, e mais além, existam muitos outros profissionais que produzem arte e entretenimento numa mistura saudável, popular, artistas de carne e osso que são também agentes e parte do mundo criativo, com tanto direito a sobreviver da ajuda de fundos públicos como os que deles sempre auferiram.