As ondas de choque da sentença de instrução proferida por Ivo Rosa na passada sexta-feira sucedem-se. Por um lado, José Sócrates entre a porta de saída do tribunal e a garagem foi balbuciando um conjunto de ideias que só podem vir da cabeça de alguém profundamente doente. Dá pena ver um ex-primeiro-ministro, minutos depois de ter ouvido pela boca de um juiz que havia sido corrompido, lavado dinheiro e vendido o seu cargo ao melhor preço, afirmar que teve uma grande vitória e, ó surpresa!, aventar a hipótese de vir ainda a reflectir sobre uma corrida presidencial em 2026.
Por outro lado, os partidos políticos fazendo coro dizendo que o regime está doente e que precisamos de reflectir colectivamente sobre a justiça em Portugal. Por último, temos a reacção do Partido Socialista. Entre o silêncio incomodado e a voz oficial de António Costa, o PS afirma que a justiça deve perseguir o seu caminho, como se a justiça vivesse numa bolha isolada do resto da sociedade e as regras que regem a justiça não resultassem de escolhas que os actores políticos fazem no desenho das instituições.
Observando estas reacções, o mais interessante, em minha opinião, é o tom de inevitabilidade de tudo isto. Apesar da reacção de espanto pela dimensão da disjunção entre a acusação do Ministério Público e a decisão de Ivo Rosa, da qual, de resto, partilho, todo o país esperava algo deste género. Mais, seguindo o ritual habitual em Portugal, os partidos políticos afirmam-se muito indignados e clamam por mudanças. Todavia, mais uma vez nada irá mudar. É certo que a indignação, nas cloacas das redes e nos jornais, durará um pouco mais do que o habitual até porque, convenhamos, o assunto é sério.
A mudança na justiça nunca ocorrerá por um motivo simples e que vem nos livros. Os actores políticos, que definem as regras do jogo democrático e da justiça, apenas têm incentivos para promover reformas quando antecipam que a mudança institucional lhes trará benefícios ou será indispensável para manterem os benefícios actuais. Sejamos claros, desde os partidos políticos, passando pelo Presidente da República, até ao sistema extractivo de sociedades de advogados que beneficiam fortemente com estes processos judiciais, ninguém tem quaisquer incentivos para mudar as regras do jogo. Se as regras fossem mudadas, arriscavam ser apeados do poder e deixar de ter acesso institucional aos locais decisivos para a distribuição de recursos públicos.
Olhemos com particular atenção para os partidos políticos, na medida em que são estes que detêm o controlo das instituições que podem promover reformas na justiça. Apesar da perda continuada no número absoluto de votos, os partidos políticos continuam a manter as rédeas do poder e a serem sucessivamente reeleitos. A mítica estabilidade do sistema partidário português, tantas vezes celebrada como algo de positivo, é péssima para o país, na medida em que não traduz um prémio que os eleitores dão pela boa performance dos partidos na condução de políticas públicas que produzam bem-estar. Os partidos políticos terão incentivos para fazer reformas, incluindo na justiça, quando houver uma percepção tangível de que podem estar prestes a perder o poder de forma inexorável. Naturalmente, acenar-me-ão com o fantasma do Chega para contradizer a necessidade de mudança. No entanto, em minha opinião, a mudança não tem de passar necessariamente por partidos como o Chega. O ideal seria o aparecimento de forças moderadas e modernas. Aliás, quanto mais tempo se adiarem as reformas e se impedir o aparecimento de novos actores políticos, maior será a probabilidade de o Chega, ou um qualquer partido análogo, ter sucesso.
Naturalmente que o facto de Portugal ser um gerontocracia com elites políticas, económicas e judiciais inamovíveis não facilita a mudança. É difícil promover reformas quando os actores são os mesmos, no fundamental, há décadas. Por exemplo, a média de idades do Conselho de Estado é 71 anos. O nosso Executivo é presidido por António Costa, alguém relativamente novo, com apenas 60 anos. Seria, no entanto, pensável, termos em Portugal um primeiro-ministro ou um Presidente socializados já em democracia e crescidos dentro da União Europeia? Em França, o Presidente tem 43 anos, na Áustria, o primeiro-ministro tem 34 anos, e a primeira ministra finlandesa tem 35 anos. Todo aquele debate que tivemos sobre a necessidade da representação de mulheres aplica-se aqui exactamente com as mesmas dinâmicas. Assim como não queremos elites políticas compostas apenas por homens, não representando, assim, a população em geral, não queremos elites políticas que não representem a diversidade etária.
Chegados aqui, creio que, apesar de tudo, há razões para Sócrates estar contente. A gerontocracia reinante e os partidos políticos inamovíveis são a garantia de que, apesar de ser um pária social, nunca verá a prisão e poderá gozar o dinheiro em paz. A reforma da justiça em Portugal, assim como tantas outras, pode esperar.
P.S.: No último artigo, sobre Francisco Louçã, fui acusado publicamente de menorizar o curriculum político e académico internacional que Louçã. Longe de mim querer menorizar tão grande figura. Quanto ao curriculum político, participar na Quarta Internacional não é exactamente recomendável. Aliás, o próprio argumentário de Louçã pressupõe que o Comunismo apenas foi (é) abjecto no tempo de Estaline, e óptimo em todas as suas outras declinações. Quanto ao curriculum académico, penitencio-me por não ter indicado aos leitores a minha fonte. As Universidades do Minho e do Porto têm um ranking dos economistas Portugueses, baseados em indicadores objectivos, como a produção científica. Francisco Louçã aparece nesse ranking em 87º lugar, com apenas 9 artigos publicados ao longo de toda a carreira o que, para um catedrático da sua craveira, é manifestamente curto. Deixo o link aos leitores para julgarem por si mesmos.