Em 1519, quando Hernan Cortés aportou no Novo Mundo e perguntou aos líderes Aztecas onde haviam obtido as suas facas — e o ferro de que eram feitas — aqueles apontaram para o céu. Não era mentira. Muito antes de os humanos terem descoberto que das entranhas da Terra nasciam os metais que, trabalhados, depurados, batidos, se podiam transformar em armas e utensílios, o acesso a esses metais estava reservado para aqueles que, literalmente, porque em meteoritos, choviam, como oferendas divinas, dos céus. Não será estranho, pois, que a palavra Suméria “An-bar”, o primeiro vocábulo conhecido para designar o ferro, se escrevesse, apropriadamente, com os símbolos “céu” e “fogo”, sendo ainda hoje, genericamente, traduzida como “metal celestial”.

Foram, de facto, as poeiras férreas das estrelas que, em rastos de fogo e explosões meteóricas, trouxeram até ao mundo dos homens o progresso com que o metal, quando apropriado e bem utilizado pelos humanos, prometia revolucionar a idade da pedra. Não poderemos, então, estranhar que para esses mesmos homens, espectadores interessados no fenómeno, se gerasse a convicção mais profunda que era no céu que os deuses habitavam, sendo de lá que aqueles, em sendo sua vontade, enviavam as benesses que prometiam salvação. Mas não foram apenas os metais que caíram dos céus. Também o sol iluminava os dias e aquecia as plantas, tal como a lua definia as marés e os meses, trazendo com eles os dias maiores, bem como os menores, numa cadência perpétua, fixa, imutável, que ensinou ao Homem que, uma vez apreendendo a rotina, era possível fazer algo hoje que trouxesse benefícios apenas amanhã.

Junto com a descoberta do tempo, veio também a geometria das formas universais vislumbradas no céu estrelado e que davam forma aos deuses. E dessas formas nasceram os templos que, cá em baixo, reflectiam os deuses celestiais que pairavam lá em cima. As praças centrais, os monumentos, as portas que marcavam a iluminação divina do sol naqueles específicos dias do ano, assim garantindo a ressurreição do que havia morrido no ano anterior, tudo se desenhava com um espelho — inferior, material, improvisado, mas eternamente aperfeiçoado — da perfeição divina celestial. Os deuses davam as formas, as regras, e os homens, anotando, imitando, aproveitavam — vislumbrando no céu a ordem divina, salvadora, e plasmando-a na Terra.

Ainda hoje, passados milénios, o pensamento reflecte essas formas primordiais no intelecto humano. Começando, desde logo, pela teoria das formas platónicas onde a verdade, harmónica e universal, do mundo das ideias, divino, é reflectida no mundo inferior dos sentidos pela multiplicidade caótica das coisas. A filosofia nasceu directamente da teologia, e nem de outra forma poderia ser pois se não era do céu que sempre a ordem e a verdade haveriam descido sobre os homens? E, desse modo, seguiu pelos ideais das cidades de Deus de Santo Agostinho, ou a participação, gradual, no Bem e na Verdade, que São Tomás desbravava, em fusão, como o complemento filosófico que comprovava o dogma, nos trabalhos de Aristóteles.

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Daí, pela mecânica Newtoniana — universal, repetitiva, perpétua — gerida pelo grande artífice, tal como pela dicotomia entre a mente e o corpo cartesiana ou, ainda, a vontade geral de Rousseau e a razão transcendental de Kant, comum a todos eles é a forma racional, o legado divino primordial, configurar a fonte abstracta da ordem e harmonia — mitológica, é certo — que, lá de cima, de um hipotético ponto arquimediano universal, carrega o mundo, organiza-o e promete, tal e qual os astros originais, junto com a chegada da Primavera, a nossa salvação. Ou seja, a crença contemporânea na razão — hoje traduzida por “ciência” — como uma quimera harmónica e salvadora face ao caos existencial não é de hoje, muito pelo contrário, será uma simples tradução contemporânea daquilo que de mais antigo existe no intelecto humano — o mito da salvação que vem de cima, de fora, resgatar-nos da nossa condição.

Mas, do outro lado, as coisas mudaram. Ao contrário dos Aztecas que esperaram até aos seus dias do fim pelo metal celestial para esculpir as armas, os paleo-orientais descobriram que o progresso não vinha apenas por decreto dos deuses celestiais. Também a deusa terrestre, Tiamat, a Grande Mãe que tudo paria dentro de si mesma, incluindo os homens que ainda assim não deixava de devorar aquando chegada a sua hora, prometia nas suas entranhas, no seu ventre mágico de uroborus, essas mesmas riquezas — e ainda em maior abundância. Desde o início, o Homem, além de agricultor, também se fez mineiro fazendo com que, a par dos deuses primordiais, também a sacralidade da sempre fértil Mãe Natureza se desenvolvesse junto com o poder e a arte do próprio Homem. Afinal, a Terra gerava o metal, mas era o Homem que o encontrava, que o carregava e, uma vez roubado o fogo aos Deuses, era ele também que aperfeiçoava e melhorava, esculpindo e batendo, queimando e explodindo em enormes e infernais fornaças, esses úteros artificiais que, teluricamente, “aceleravam” o processo criador da “matéria” — desde o pó até ao objecto final.

Nasceram, então, os alquimistas e os mestres do fogo e metal, aqueles que trouxeram a abundância ao mundo e substituíram os meteoros, também eles feitos de fogo e lava, os primeiros mensageiros dos deuses. A metalurgia, uma revolução ao tempo tão brutal quanto a informática aos dias de hoje, encheu então o mundo — de armas, de poder, de promessas, incluindo, a seu tempo, aquela que aventava que ao Homem estaria destinada, um dia, a receita secreta, perfeita, onde tudo, desde que, primeiro, dissolvido na exacta e secreta medida, solve, poderia ser, depois, com o devido conhecimento que o tempo daria, reconfigurado, coagula, como ouro — solve et coagula, o lema dos alquimistas, a chave da quimera.

Foi também do metal que veio o verdadeiro dinheiro. E foi o dinheiro que primeiro conseguiu cumprir com o lema alquimista, conseguindo dissolver o valor de tudo em algo material que, uma vez reconfigurado, voltava a formar o valor de qualquer outra coisa, assim podendo tudo ser trocado, mercadejado, ou seja, transformado. Os alquimistas enganaram-se quando imaginaram que o poder estaria na “coagulação” do ouro, ou mesmo na vida, porque, e como o Ocidente veio a comprovar, o verdadeiro poder afinal estava, não na criação, ou sequer na transformação, mas sim na troca. O poder mágico — verdadeiro, total, incontestável — sobre a matéria estava, como está ainda, não no ouro, ou na prata, em si mesmos, mas na função que o ouro e a prata conquistaram ao longo dos milénios. Ou seja, o desígnio da criação do ouro artificial, alquímico, cumpriu-se, não porque se tenha conseguido purificar e cozinhar ouro, mas, metaforicamente, pelo truque de mágica que retirou a função de tudo poder trocar ao ouro — e convencer os homens que outra coisa, essa sim cozinhada, criada artificialmente pela mão que assim passou a comandar o mundo, cumpriria ainda melhor essa função.

Solve et coagula, sem dúvida: mesmo que, primeiro, em contrato emprestado e indexado a gramas de ouro e, depois, em mero papelucho desenhado com brasões e demais adornos inventados para lhe fazer parecer a dignidade e nobreza que não tinha ou, também, agora, em bits e bytes algorítmicos, ainda assim, tudo o dinheiro consegue dissolver e recriar.

Verdade seja dita, o Homem, depois de milénios, através do Ocidente, conquistou a liberdade. Essa liberdade, mesmo que ainda, e perpetuamente, dependente da vontade divina que, forçosamente, o antecede, não deixa de ser sua: arrancada das entranhas do uroborus, o Homem esculpiu-se a ferro e fogo a si mesmo, à imagem do Cosmos e da vontade indomável que tem dentro de si, conquistando o mundo, destruindo a adversidade — tal como Marduk esventrando Tiamat — e, rumo ao transcendente que sentia dentro de si, mesmo que aos avanços e às arrecuas, transformou o mundo agreste e inóspito original num jardim do qual, graças a Deus, todos nós podemos hoje usufruir — que nem Adão e Eva —  como ninho seguro, puro, tranquilo, protector, que nos forma as mentes e os corpos infantes até chegar a maioridade que, consigo, traz a inevitável queda na realidade adulta e madura da condição humana.

E assim se fez a civilização mais rica, avançada, segura e livre da História.

No entanto, junto com a abundância, de forma entrópica, chegou também, na modernidade, a vontade de não cair do ninho paradisíaco — ou seja, de não alcançar a maioridade —, como um infestante mental, um vírus corrosivo que vem, a coberto de promessas de facilidade, apodrecer e destruir o ninho que os nossos antepassados construíram para nós, corrompendo as mentes mais débeis e infantis. A par, a pouco e pouco, erodiu-se também o intrincado sistema de troca de valor que sustentou todo o processo de criação de abundância, degenerando de um mercado progressivamente mais livre — porque aberto a cada vez mais pessoas que nele poderiam entrar para trocar os frutos do seu labor por tudo o resto do qual precisassem, ou seja, para usufruir da abundância — num sistema em que as mãos dos “alquimistas”, os tais que controlam o novo dinheiro “inventado”, tudo comanda e tudo controla.

A coberto da conveniência política e do expediente do curto prazo, no século XX, o dinheiro foi colocado nas mãos dos políticos e dos burocratas. Estes, normalmente a soldo de quem lhes paga as campanhas, tal como, também, por norma, pouco avisados face ao mundo real para lá do soundbyte que influencia a popularidade, imaginaram que os “técnicos”, os “especialistas” da “ciência” económica e financeira, seriam as pessoas certas nos lugares certos para gerir o problema do dinheiro. E assim foi, até que, em 2008, este acabou. E, desde aí, para disfarçar, os alquimistas financeiros trataram de criar todo o dinheiro que bem lhes apeteceu, isto enquanto o souberam colocar nas mãos certas, amigas, para a maior transferência de riqueza da história da Humanidade: enquanto esta, tolhida pelo medo, pela propaganda e pela TV, se escondia em casa do vírus e demais ameaças, os alquimistas imprimiram triliões, todos eles falsos, sem qualquer valor real, mas que deu para tudo comprar, ainda para mais, porque com dinheiro falso, a preço de saldo — solve et coagula.

Por curiosa coincidência, ao mesmo tempo, e precisamente porque não tarda o dia em que os homens que, ainda hoje, continuam na labuta diária pela sobrevivência nas agruras do mundo real, se apercebam do embuste alquímico-financeiro — que tudo dissolveu para tudo roubar —, já aparecem os mestres do mundo novo — digital, algorítmico, centralizado — com o novo futuro dinheiro, aquele que há-de substituir a palha inútil, desprezível, com que nos deixámos iludir.

O metalúrgico — divino, ancestral, fruto do labor — dá agora o lugar ao digitalúrgico, tornando, desse modo abjecto, completa a abstracção da função do dinheiro, lançada no éter, longe de qualquer coisa que, de facto, tenha um vislumbre de valor real. Do mesmo modo, aumenta ainda mais o controle daqueles alquimistas que se propõem a criar — e gerir — esse novo dinheiro que nos virá salvar da bancarrota mundial. A começar, já em 2023-24, os planos dos bancos centrais para as Central Bank Digital Currencies (CBDC), unidades criptodigitais com memória própria, que guardam todas as transacções onde participam no sistema, e que podem ser ligadas e desligadas dependendo da vontade do algoritmo que as crie. Desde prazos de validade para as unidades monetárias até decidir o que cada um pode, ou não, comprar, tal como quando e como, as novas moedas digitais centrais pervertem por completo o mercado descentralizado que, desde as entranhas de Tiamat, chegou até nós: as CBDC pertencem a quem as cria, nunca a quem as detenha, destruindo, desse modo, e pela primeira vez na História, o principal princípio da liberdade monetária — o da propriedade do dinheiro.

Ainda a propósito, em 2020, a empresa Microsoft do incansável Sr. Gates apresentou uma patente  onde descreve um sistema no qual a mineração de uma moeda criptodigital se faz em função de uma ligação do algoritmo central às carteiras digitais individuais de cada um dos participantes no sistema. Ou seja, de acordo com o algoritmo, consoante os indivíduos cumpram ou não as tarefas e os critérios centralmente definidos, as suas carteiras individuais geram, ou não, “dinheiro”. Aí, o mundo primordial estará verdadeiramente invertido, e vertido, no digital: sendo o Homem o mineiro primordial que extrai o valor digital, por si próprio, apenas que, neste caso, como nos regimes mais brutais da Antiguidade, transformado em escravo mineiro que cumpre as ordens e os desígnios de quem gere o sistema.

A mitologia ainda comanda o mundo — e as mãos alquimistas sabem-no. Por isso mesmo, a crença na tecnocrática ciência como forma de salvar o mundo é hoje habilmente fundida com o vírus mental que impele os adolescentes a não saírem dos ninhos, ou seja, a não enfrentarem o mundo. Assim, chega agora pela hegemonia da TV e do smartphone a voz — perversa, demoníaca — que vem tentar as massas: dá-me a tua liberdade e, em troca, ser-te-á dada a salvação material no mundo. E ela aí está hoje, a “salvação” que promete que não terás nada, mas serás feliz. Ou seja, em troca de algo como, por exemplo, o rendimento básico universal, vende-se o paraíso digital alimentado pela robótica e as novas formas — inclusivas, abundantes, limpas — de energia. A seu tempo, a vida eterna no digital, sem as agruras próprias do mundo real, sem dificuldades, apenas facilidades, onde os bons alquimistas, os novos deuses orquestradores do mundo novo digital, tudo garantem a todos — bem como na sua exacta, e justa, medida.

Um logro, é certo, mas, pior, um logro que perverte a própria essência da Humanidade. Onde o Homem se fez Homem, portanto adulto e maduro, como o metallurgicon enfrentando, a ferro e fogo, o uroborus da Grande Mãe que, mesmo o gerando, à primeira oportunidade não deixava de o matar, regressa agora esse uroborus castrador, disfarçado, pela mão do digital, para nos transformar no digitallurgicon, um homúnculo amputado do mundo, fechado sobre si próprio, aprisionado no éter, sendo nessa dissolução da vontade e liberdades humanas individuais na multidão — digital, perdida, sem sentido, vazia — que o ciclo criativo que nos trouxe até aqui ameaça fechar-se, porventura para sempre.

A TV, bem como a restante propaganda, empresas convenientemente detidas, ou subsidiadas, pelos donos do sistema, não se cansa de apregoar, a uma só voz — ininterrupta, uníssona, hipnótica, insuportável — o novo caminho e as virtudes desse mundo novo. Os adolescentes repetem, viralmente, de forma maníaca, os mantras — “eu sigo a ciência”, “eu vou salvar o mundo das alterações climáticas”, “o consenso é evidente”, “não sou negacionista”, “vai ficar tudo bem” — isto enquanto anseiam, mais ou menos secretamente, pela garantia do safe space que lhes prolongue o ninho infantil indefinidamente no futuro.

Ao mesmo tempo, nas ultra-organizadas cidades, crescem exponencialmente as regras e as obrigações colectivas que, em nome da salvação mundial, bem como da harmonia celestial, mesmo que muito distantes das estrelas que as luzes urbanas não deixam sequer vislumbrar, a cada dia que passa preparam laboriosamente o salto mortal nesse detestável mundo vendido como novo, mas absolutamente estéril, sem sentido ou esperança, sem liberdade, salvo a de cumprir com os desvarios daqueles que, não sabendo lidar com o seu próprio vazio, não descansam enquanto não tomarem o lugar mitológico, primordial, dos deuses que ditam as formas do mundo.

Naturalmente, estas novas formas não virão lá de cima, do céu, nem trarão as benesses para alicerçar, através do trabalho e do sacrifício voluntários, um mundo livre, próspero e abundante; virão, sim, do centro do sistema, através do algoritmo e do certificado digital, para, impondo o trabalho e o sacrifício a régua e esquadro, tudo controlar e gerir centralmente, moldando-nos em escravos digitais, serventes passivos perfeitos dos donos do sistema que se pretende agora implementar. Pior, na ânsia desse triunfo, não hesitam os alquimistas de hoje em destruir o nosso mundo para intentar construir o seu paraíso digital, trans-humano, do qual se imaginam profetas — solve et coagula.

A defesa intransigente do nosso mundo, dos nossos valores, dos nossos princípios, dos nossos direitos, das nossas comunidades, das nossas famílias, dos nossos filhos, da nossa civilização, bem como o resgate da propriedade da nossa riqueza, do nosso esforço, do nosso trabalho, de nós próprios, dos nossos corpos, das nossas mentes, será, portanto, a suprema e fundamental resistência à tirania — de baixo para cima —, pela liberdade, pela nossa humanidade, pela vida.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.