Hoje em dia, a única coisa realmente gratuita no mundo é a motivação para nos separarmos em pequenas ou grandes minorias. Querem convencer-nos que quem realmente importa não é cada um de nós, na nossa maravilhosa individualidade. Querem colocar-nos na cabeça que a humanidade está dividida em classes sociais, opressores e oprimidos, eles e nós. E há sempre uma razão diferente para odiarmos o próximo: não há pessoas, mas apenas barreiras em direção ao sucesso. E se ainda não chegámos à felicidade desejada, é com certeza culpa de algo ou alguém, seja do capitalismo ou do comunismo, dos liberais ou dos conservadores, dos revolucionários ou da sociedade patriarcal. Como não há crença na justiça divina ou humana, as pessoas perdem a maior parte do tempo em pequenos e grandes julgamentos, sobre tudo e sobre nada. Vivemos a idade dos adjetivos e está muito distante o tempo dos verbos.
Há um filme do Woody Allen que não recebeu grande atenção, mas que considero ser um dos seus melhores: Whatever works, com Larry David. A filosofia do filme é essa mesma: seja o que for que sirva para ti (e cada pessoa é um caso), para teres alguns momentos de felicidade, neste mundo de injustiça e dor e desencontros. Seja o que for o que sirva para cada um de nós, desde que não cause dano a ninguém. É essa filosofia que tento seguir: não julgo, ninguém tem esse direito, cada um sabe a cruz que carrega. Foi Carl Jung que disse que as pessoas julgam para não ter que pensar. E o próprio Jesus Cristo foi concludente: “Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra.” Sou católico, mas o pior dos católicos, pecador e raramente praticante. Mas tenho um orgulho absoluto em ser católico, porque faz parte do que sou, das minhas raízes, da cultura em que fui criado e formado. Sou grato pelos ensinamentos que a Igreja me deu até hoje e sou fiel ao credo. Mas que maravilha é esta ideia: um ser tão imperfeito como eu, ter a compaixão de Algo que é infinitamente superior, criador de todas as coisas e em todas as coisas presente. Esta ideia leva-me a uma qualquer sexta-feira santa. Diante de mim, o Cristo crucificado. Coloco-me há dois mil anos naquele lugar distante. Eu, que tenho a fé frágil, duvido. Mas observo o seu apóstolo favorito e Maria a chorar. Pergunto-me, “quem sou eu?” E a Sua cruz é também minha.
O que provavelmente nos une mais como seres humanos é o sofrimento. “A dor é estranha, um gato a matar um pequeno pássaro, um acidente de carro, um incêndio,” começa por dizer o polémico poeta americano Charles Bukowski. Mas depois continua, na crueza profunda de um homem que passou por muito ao longo da vida: “A dor chega, bang, e aí está, pousa em ti, é real e, para quem está a assistir, pareces um tolo, como se de repente te tivesses tornado um idiota.” Gosto muito desta descrição por ser despretensiosa e relatar como de repente nos sentimos derrotados e distanciados de todos os outros, que são aparentemente saudáveis. Num mundo que esconde o sofrimento e exalta o dever da felicidade, a dor é escondida em hospitais, lares e principalmente no interior das casas.
Mas o propósito da dor está cada vez mais no vitimismo e menos nas lições que nos pode dar. Sei bem que no meio do tormento do sofrimento humano, tantas vezes vez inexplicável de tão forte, é muitas vezes impossível fazermos um debate interior. É uma altura em que já não há morfina que resulte ou palavras que confortem. E neste momento em que não há linguagem humana que faça sentido, a voz do silêncio é a única que nos pode aliviar. E é neste preciso instante em que mais nos unimos a todos os seres humanos do planeta, na inevitabilidade de um sofrimento que foi, é ou será comum a todos. E é neste preciso instante que deixam de haver barreiras sociais, económicas, ideológicas, religiosas, raciais, sexuais, nacionais ou continentais. E é neste preciso instante que somos um, todos num só.