No Estádio do Bessa, durante o jogo com o Boavista, a claque do Futebol Clube do Porto exibiu uma tarja onde se podia ler “32 selecções apuradas, 6.500 vidas derrotadas”. Este gesto, que já deu a volta ao mundo através das redes sociais, teve como propósito criticar a realização do mundial de futebol no Qatar onde morreram milhares de trabalhadores nos últimos dez anos a construir as infraestruturas com que os luxos de um país e de uma competição se apresentam ao mundo. Mas estas não são as únicas acusações, a título de violações de direitos humanos, que são imputadas a este pequeno país.

A atribuição do mundial ao Qatar ocorreu há 12 anos, sem que isso tivesse originado grandes sobressaltos cívicos. Todavia, à medida que nos fomos aproximando do início dos jogos, muitas foram as polémicas que foram surgindo e renovando, desde a possível corrupção na FIFA que levou à atribuição do campeonato, às más condições de trabalho dos migrantes (sujeitos ao primitivo e desumano sistema de Kafala), às inúmeras mortes (sem que se saiba ao certo quantas) que da construção das infraestruturas resultaram, à forma como os nossos chefes de Estado e chefes de Governo estão a ser cúmplices com esta estratégia de reforço de capital político e promoção de um regime autocrático, que tem, no mínimo, um duvidoso carinho pela democracia, pelo pluralismo e pelos direitos humanos.

Não é este, todavia, o primeiro mundial envolto em polémica, bastando relembrar o caso da África do Sul, em 2010, e da Rússia, em 2018. É cada vez mais comum que os países, quando se candidatam a organizar o torneio de futebol, estejam mais interessados em utilizar o desporto como arma de soft power para construir uma imagem ou narrativa internacional positiva do que propriamente no fenómeno futebol. A escolha do Qatar para anfitrião do mundial de 2022 é um exemplo acabado disto mesmo, pois o país, apesar de não ter tradições futebolísticas, nem tampouco uma meteorologia minimamente adequada, precisa de se sentir protegido internacionalmente e reforçar as suas fronteiras perante o Irão e a Arábia Saudita.

Ora, um país que gastou mais do que o seu PIB anual na organização de um evento desportivo desta envergadura e em que a recuperação total do investimento é impossível, almeja, certamente, outros benefícios.

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Na realidade, a moeda de troca de um dos já proclamados melhores e mais caros mundiais de sempre – o Qatar gastou cerca de 220 mil milhões de euros na organização do certame – é a promoção de péssimas condições de trabalho dos migrantes, o que inclui horários semelhantes ao do trabalho forçado, jornadas sob um sol tórrido em que os trabalhadores são escolhidos de acordo com a pigmentação da pele, ausência de folgas e salários reduzidos arbitrariamente, morte de milhares de trabalhadores migrantes sem que tenha sido aberta qualquer investigação para o efeito, negação de direitos das mulheres, punição de relações entre pessoas do mesmo sexo e falta de liberdade de imprensa.

Não basta, portanto, ter dinheiro e gastá-lo em estádios, hotéis e aeroportos para convencer meio mundo de que o Qatar é um país moderno e em progressão, quando a esmagadora maioria da sua população é composta por não-cidadãos sem direitos políticos, poucas liberdades civis e acesso limitado a oportunidades económicas. Em suma, quando os direitos humanos são postos em causa todos os dias. O problema destas estratégias de soft power é que elas facilmente se convertem em estratagemas de sportswashing, ou seja, em manobras de branqueamento em que o desporto serve, única e exclusivamente, para esconder a realidade de um país que anseia a legitimação do seu regime seja politicamente, quer internamente, ao organizar um evento com prestígio internacional, quer externamente, com a promoção de visitas de personalidades internacionais.

Se outra atitude era esperada da FIFA, que teve várias oportunidades para exercer um papel activo na promoção e defesa dos direitos humanos, nomeadamente aprofundando as investigações aquando das mortes dos trabalhadores migrantes e garantindo os direitos dos trabalhadores nas construções das infraestruturas, pois se a FIFA impõe que as países anfitriões adoptem normas que garantam um tratamento fiscal privilegiado, também poderia ter imposto a adopção de normas para assegurar direitos dos trabalhadores na construção das infraestruturas e o tratamento não discriminatório dos fãs, também outra atitude era esperada dos nossos chefes de Estado e chefes de Governo que, conscientes desta problemática, apelam, sem pudor, a que se esqueçam as violações dos direitos humanos e que os adeptos se foquem no futebol, sendo cúmplices desta estratégia de promoção de regimes autocráticos, contribuindo para a tão almejada projecção internacional.

Já é tarde para boicotar o Mundial, restando-nos que a selecção nacional e as restantes selecções, à semelhança do que aconteceu com o movimento “black lives matter”, adoptem iniciativas, de, por um lado, protesto à violação de direitos humanos e, por outro lado, de homenagem aos trabalhadores que perderam a vida nas construções dos estádios.

A Federação Portuguesa de Futebol não assumirá o risco de contrariar a política da FIFA sobre esta matéria, ao contrário do que fez, corajosamente, a Federação Dinamarquesa, mas este poderá ser o mote para, de futuro, obrigar as organizações do futebol a terem uma maior responsabilidade social.