“Deixem-nos trabalhar” é uma das frases famosas de Cavaco Silva quando Primeiro-Ministro, e veio a propósito das chamadas “forças de bloqueio” que abrangiam o Presidente da República, o Tribunal de Contas e a oposição. Se não fosse por mais nada, a frase ficaria na História como sinal de uma visão científica do exercício da governação. Esta não passaria da implementação de soluções técnicas, fossem elas de qual área, da saúde, à economia, à educação, ao próprio comportamento privado dos cidadãos (palavra que por si só, neste contexto tecnocrático, devia provocar arrepios). Como num passe de mágica os nossos representantes democraticamente eleitos e respectivo séquito de técnicos passaram a deter todo o conhecimento relevante, sendo assim capazes de decidir um sistema de preferências universais, pois conhecem e são detentores do comando de todos os meios disponíveis. Podem assim desenhar a sociedade que governam de acordo com o que consideram “a boa sociedade”, prover tudo a todos, promover a felicidade dos cidadãos, libertar as pessoas dos constrangimentos da realidade. No fundo construir uma espécie de paraíso na Terra e criar uma estrutura moral e ética que deve orientar as massas, baseada numa epistemologia de que se entendem donos e senhores. Nunca se enganam e dúvidas é coisa que não lhes assiste. Robespierre não pensaria melhor. De alguma forma, esta presunção da governação “técnica” não tem nada de novo, remonta pelo menos a Platão e à ideia de que a gestão da cidade deve ser entregue a quem conhece a “técnica da governação” e não a amadores que “não sabem nada”.

Apesar da experiência soviética, entre outras talvez a maior e pior sucedida tentativa de governar “cientificamente”, não aprendemos nada. A tentação tecnocrática no “Mundo Livre” é anterior à queda da URSS, mas, vá-se lá saber porquê, é após 1989 que ganha tracção, pelo menos entre nós, e daí a frase de Cavaco Silva mencionada fazer sentido. Como faz outra dele, menos famosa mas que nunca esqueci: “Duas pessoas na posse da mesma informação têm que chegar à mesma conclusão”, ou ainda, mais tarde, esta de José Sócrates: “É o Estado que nos dá a liberdade”. Ou seja, há um acordo entre “os adultos na sala” de que todos os problemas sociais e de governo têm exclusivamente soluções técnicas e, pior, cabe ao Estado e eventuais apêndices implementá-las. De assessores externos a contratações no sector privado de que são exemplo gabinetes de advogados, a técnica tudo resolverá.

Decorre daí a necessidade de criação de um exército executor feito de técnicos e burocratas, cujo papel se torna essencialmente, e na melhor das interpretações, justificar através da técnica e/ou da ciência as decisões de políticas públicas (apenas) formalmente tomadas pelos representantes eleitos.

Ora, os “adultos na sala”, os detentores da técnica, o que conseguiram de há trinta anos para cá foi um país estagnado, sem perspectivas de futuro e sem ponta por onde se lhe pegue. Ao ponto de hoje, no ano da graça de 2022, ter descido abaixo de 1974 no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, um índice relativo, mas que nos ajuda a pensar na qualidade da governação “técnica” das últimas décadas. Em 1974 era 24º, em 2022 é 38º.

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A tecnocracia encerra demasiados vícios e poucas virtudes, desde logo porque os técnicos não estão suficientemente equipados para prever os efeitos de soluções propostas para resolver um problema, noutras questões igualmente prementes e dignas de serem consideradas. Para quem só tem um martelo todos os problemas são pregos, e serve de exemplo quase perfeito a entrega de decisões políticas a especialistas e técnicos de saúde durante a Covid. O que nos foi imposto foram decisões de gente sem qualquer habilitação em políticas públicas ou, mais importante, conhecimento de outras áreas além daquela na altura considerada prioritária por eles próprios. A governação no sentido nobre do termo foi entregue a tecnoburocratas, para quem o mundo gira em redor do próprio umbigo e onde desempenham a única e a mais fundamental das funções atribuídas por Deus(?) à espécie humana.

As alterações climáticas são outro exemplo: a palavra do IPCC, de climatologistas e especialistas no clima é a palavra final sobre “o que deve ser feito” e que se lixem as consequências. Não interessam os problemas sociais, económicos, de saúde ou bem estar das pessoas que podem acarretar a obsessão pela resolução de um problema intuído como existencial, independentemente de o ser ou não. Não interessa a pobreza, não interessam as pessoas, não interessa a economia, nada interessa além da incrivelmente estreita visão dos herdeiros enjeitados dos reis-filósofos platónicos.

As sociedades são o que são à custa de séculos de experimentação, tentativa e erro, ninguém as imaginou ou desenhou a régua e esquadro mas esta arrogância ignorante dos especialistas ressurge sempre.

E quanto aos políticos, bem…nada como ouvir a ironia de Sir Humphrey Appleby em conversa com Bernard em “Yes, Minister” nos já longínquos anos 80 do século passado:

– Bernard: “Eu quero uma consciência tranquila”

– Sir Humphrey: “Quando adquiriu este gosto por luxos? Consciências são para os políticos, Bernard, nós somos só humildes funcionários cujos deveres são implementar as exigências dos nossos representantes democraticamente eleitos”

Quem governa hoje tem com certeza a consciência tranquila, afinal é no conhecimento total e indiscutível dos especialistas, os tecnoburocratas, que respaldam as decisões para resolução dos problemas que afligem a populaça, mesmo que essas decisões sejam apenas formalmente dos governantes. E a populaça quer-se longe e sossegada na ignorância atávica que a define. Ou então, caso se torne irrequieta, é exemplarmente punida.

É caso para dizer que onde Martin Luther King tinha um sonho, os tecnoburocratas têm um plano.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.