Como pode um assunto tão clássico como o da cidadania ter sofrido uma alteração tão radical nestes últimos anos? A evolução tecnológica e o ritmo da inovação ajudam seguramente, a que novos conceitos e novas formas de comunicar e de se relacionar com a comunidade, alterem aquilo que é a noção de pertença à sociedade. Mas o que surpreende é que todas estas inovações e revoluções tecnológicas não tornaram o conceito de cidadania à prova de algo tão tradicional como alterações geopolíticas ou o choque de valores culturais. E são esses problemas que são a causa da alteração de cidadania, mas a tecnologia pode ter servido de gatilho e de acelerador do processo.

Toda a revolução tecnológica parece potenciar ainda mais a rápida alteração do conceito de cidadania. Vejam-se, a título de exemplo, os refugiados que chegam à Europa munidos de smartphones, registando as suas provações em contas comuns e correntes de redes sociais. Para estes refugiados, as redes sociais são tão ou mais importantes que as infraestruturas de transporte.

Primeiro e sobretudo, porque representam um acesso contínuo à informação, o que é de vital importância para quem está num contexto de absoluto desespero em mudança. Note-se que os refugiados vêm de longe, com uma enorme necessidade de informação sobre o percurso a transcorrer. Não se trata apenas de acesso a mapas, mas a redes de contactos (muitas vezes traficantes) e a estruturas de apoio no acolhimento no Ocidente. Não falo em estruturas legais ou estatais europeias, mas nos familiares, nos amigos, nos parentes afastados, nos membros da tribo, da etnia, etc. que já estão na Europa. Usem por paralelo o que acontecia nos anos 60 com os nossos emigrantes, que cruzavam fronteiras e países a salto, para irem clandestinos viver em bairros de lata no centro da Europa. Havia sempre um conhecido, um contrabandista, um primo que fazia as vezes das redes sociais de hoje. Esses conhecimentos eram o bilhete de acesso a um futuro melhor para dezenas, depois centenas e por fim alguns milhares de portugueses. O processo, que nos idos 60, levou década e meia a passar da mão cheia de refugiados aos milhares de emigrantes. Nesta década, com redes sociais, o mesmo processo de proliferação levou um mês se tanto por país de origem e faz-se com um manancial de informação que não é comparável ao que estava disponível aos nossos emigrantes. Com as vantagens e desvantagens que daí decorrem, mas sobretudo com os riscos que acarretam e com as tragédias a que assistimos, porque esta informação toda acaba por ser ruído para muita gente.

Em segundo lugar, as redes sociais e as novas tecnologias são importantes, porque são uma forma de manter contacto com os locais de partida. Os refugiados sentem o que todos sentimos, neste nosso novo mundo. Vamos para fora e seguimos todas as notícias, tudo o que se passa no nosso país, na nossa cidade, no nosso trabalho, na nossa família, na nossa casa, como se estivéssemos sentados no nosso sofá. O acesso à internet torna esta sensação o mais democrática possível. Estamos fisicamente fora, mas a nossa cidadania é ainda a de origem. De novo a analogia com os nossos emigrantes nos idos 60 e 70. Pensem, por um momento, na função que tinha o jornal a Bola para manter viva a ligação a Portugal. Lembrem-se apenas de como o jornal era esperado na Gare em Paris, à chegada do comboio. Hoje em dia, para os refugiados essa sensação é instantânea e geral ao toque de dedo. Ainda nesta segunda dimensão, não esquecer o contacto com a família de origem. O sofrimento da saudade é algo que estas novas gerações conseguem atenuar com videoconferências e chamadas contínuas para casa. Ou seja, também do ambiente familiar é difícil haver total afastamento nos dias que correm.

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Terceiro elemento e, para mim, o mais controverso: as redes sociais representam para os refugiados projeção para os países onde buscam proteção ou prosperidade. A sua literacia digital é algo que sentem partilhar com os cidadãos dos países desenvolvidos que agora procuram. Ou seja, reforça-lhes a noção de pertença a uma sociedade segura e desenvolvida, com quem partilham muitos dos hábitos culturais, desde logo as mesmas redes sociais. O raciocínio é algo “como podem no Ocidente negar-nos o acesso e as oportunidades, se os smartphones e as redes sociais que usamos são as mesmas?”

Esquece-se neste raciocínio, que não é o facto de usarmos os mesmos Levi’s e as mesmas Nike e os mesmos Samsungs e os mesmos Instagrams que define a globalização. Não é porque as marcas que consumimos são globais, que os valores e as culturas são também os mesmos.

E é aqui que a controvérsia aparece: o princípio de cidadania não está globalizado como a moda, a música, o cinema, as redes sociais ou a tecnologia. E essa é a principal surpresa nestes tempos: quem chega, pode achar que a sofisticação e inclusão tecnológica é suficiente, para não ter que aceitar os valores e responsabilidades das sociedades de acolhimento: como os decorrentes do princípio da igualdade (e respeito) de géneros, da liberdade religiosa, da liberdade de expressão, da democracia representativa, da segurança, etc.

Quem acolhe, não consegue entender como pode alguém que se veste igual, canta igual e usa iguais redes sociais não abdica de valores e princípios de cidadania que são de outras paragens. Na ânsia de promover compromissos, o risco que o Ocidente corre, a meu ver, é achar que partilhando a tecnologia e integrando os que chegam nas nossas redes sociais, podemos abdicar de impor os nossos valores fundamentais e o nosso princípio de cidadania.

Não se entenda desta crónica uma crítica à tecnologia! Mas, por favor, veja-se aqui um alerta para não deixarmos que a tecnologia nos faça esquecer o que é essencial e crítico nas nossas sociedades.

Professor Auxiliar Convidado da CATÓLICA-LISBON School of Business and Economics