Quando começou esta pandemia, logo nas primeiras semanas, lembro-me que uma das maiores preocupações era a de que a economia poderia ser tomada por especuladores que se aproveitassem de desequilíbrios de mercado com escassez de produtos para fazer subir preços abusivamente. Atritos circunstanciais de mercado podem levar a que haja oportunismos de açambarcadores que aproveitam estes hiatos de eficiência para realizar lucros astronómicos e imorais. Pedia-se então que houvesse uma mão firme do Estado, com intervenção nos preços e com mecanismos acrescidos de regulação. Em Espanha, chegaram-se a ensaiar passos concretos no preço das máscaras, com resultados de resto muito maus para todos, a começar pelos consumidores que se pretendia defender.

Mais se temia a perspetiva de termos entre nós supermercados de prateleiras vazias, um pouco à semelhança do que vemos em imagens da Venezuela. Isso poderia levar a situações de aproveitamento (que também vemos, por vezes, na Venezuela) e pedia-se um punho duro do Estado, tomando as rédeas de comando dos mecanismos de procura e de oferta, estabelecendo preços e definindo quotas de volumes, durante estes hiatos de mercado.

Acontece que o mercado funcionou bem, muito bem mesmo, sem qualquer necessidade de intervenção musculada. A economia, no que às cadeias de abastecimento disse respeito, não confinou. Desde a agricultura no setor primário até às entregas domiciliárias, todo um conjunto de instrumentos de mercado asseguraram que, pelo menos do lado da oferta, nada faltou na mesa das pessoas.

Até os maiores conglomerados cervejeiros, percebendo que iam ter dificuldades de procura, ajustaram a sua produção para produzir álcool e desinfetantes e os exemplos de ajustamento do funcionamento de mercado do lado da oferta passam pela indústria têxtil, pela indústria farmacêutica, pelos serviços de entrega, pelos serviços de telecomunicações e por todos os serviços que se mantiveram razoavelmente em funcionamento. Não houve hiatos de eficiência induzidos por especulação ou abusos significativos de mercado.

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Os problemas que tivemos (e estamos a ter) são sobretudo de duas outras naturezas distintas: problemas práticos decorrentes do funcionamento condicionado da atividade económica e problemas gravíssimos (esses sim, muito preocupantes) de rendimento de famílias que perderam empregos e ficaram sem atividade.

Em síntese, do lado da oferta assistimos a um exemplo de eficiência de mercado com os supermercados razoavelmente bem (ou mesmo muito bem) abastecidos, poucas ruturas de stocks evidentes e se houve alguém a açambarcar no início, esses foram muito prejudicados. Bem feito!

Já o que não se antecipou no início da pandemia foi o poder de mercado de serviços públicos, onde houve efetivas ruturas de serviço. O melhor exemplo é claramente o das escolas públicas. A educação pública é responsável por cerca de 80-85% do ensino não superior em Portugal, o que lhe confere uma situação de primazia ou posição dominante no mercado. Para as camadas da população que não podem pagar colégios privados, essa percentagem sobe quase aos 100% e só não atinge mesmo esse valor, ou o monopólio exclusivo, porque sobrevivem, contra a vontade e o desígnio ideológico das forças políticas que sustentam os últimos governos, alguns poucos contratos de associação que vão permitindo a algumas crianças frequentar estabelecimentos de ensino não estatais sem custo direto para as famílias.

Mas, com honradíssimas e bravíssimas exceções, o que se assistiu, nos últimos meses deste ano letivo, foi a um manifesto e abusivo exercício de poder de mercado por parte de um fornecedor quase exclusivo sobre uma população que ficou sem alternativas. No que diz respeito à educação, o que assistimos na escola pública foi precisamente às mesmas imagens dos supermercados vazios de Caracas: prateleiras vazias. Nada para adquirir lá dentro e cá fora uma geração à míngua, parada um semestre completo, deixada à sua sorte, sem que necessariamente o Ministério da Educação alcançasse fazer muito mais por ela. O esforço da mobilização da RTP na recuperada tele-escola acaba por representar um inglório exercício de compensação.

Esta situação é tanto mais grave pela diferença que criou entre alunos da escola pública e dos privados. Nos colégios privados, a adaptação ao ensino à distância acabou por funcionar razoavelmente bem ou mesmo muito bem. Há desde situações em que o ensino presencial foi integralmente substituído por ensino à distância em horário normal e integral, num esforço de adaptação absolutamente admirável de professores, alunos e respetivas famílias. Há mesmo estabelecimentos que além de terem cumprido integralmente com o seu horário letivo, estenderam o calendário o suficiente para compensar o curto período perdido no ajustamento e oferecendo durante o verão aulas facultativas de recuperação. Há obviamente situações menos conseguidas, em que os horários foram reduzidos. Mas poucos serão os casos, no ensino privado, onde as aulas se suspenderam em março, sem perspetiva de retorno em setembro. Aliás se casos destes houver no privado, eles são economicamente insustentáveis, porque nenhuma família arrisca pagar propinas para este grau de incerteza e ausência de serviço. O mercado ajusta e elimina rapidamente estes casos.

Da parte das famílias, até porque muitas sofreram alterações consideráveis de rendimentos, houve bastante pressão para estes estabelecimentos privados baixarem propinas e ajustarem valores de acordo a uma eventual perda de qualidade de serviço. Acontece que muitas vezes essa perda de qualidade nem sequer se verificou e, mesmo assim, a generalidade dos colégios, baixaram-se mensalidades, obrigando-se, sem apoios do Estado, a complicadas ginásticas financeiras.

Por outro lado, as famílias, em particular as mais numerosas, tiveram de fazer avultados investimentos em material informático para assegurar que todos em casa poderiam ter acesso simultâneo a aulas digitais em formato síncrono. Uma ginástica complicada a que acorreram de novo mecanismos de solidariedade entre famílias e os próprios colégios, muitas vezes com o apoio de empresas privadas. Muitas vezes a solução é usar os smartphones que quase todos os jovens têm e usam profusamente.

Nada disto é fácil, nada disto é prático, nada disto resultou perfeito ou substitui a experiência de um ano letivo normal. Mas é muito mais fácil, muito mais prático e muito mais viável de ser feito na pequena escala que representa cada colégio.

Voltemos ao estado geral da maioria da população e à nossa analogia original: imaginem então uma situação em que uma parte significativa da população é obrigada a comprar em hipermercados do Estado, que estão como os de Caracas, com prateleiras vazias ou de portas fechadas. Ao mesmo tempo, ao lado vemos cadeias de supermercados privados a fornecer com maior ou menor facilidade produtos alimentares entregues ao domicílio. O mínimo que podia exigir a população é que ou os hipermercados abrissem, ou que os fornecedores do Estado enchessem as prateleiras ou que deixassem todos ter maneira de ir comprar aos supermercados privados.

Para isso, era preciso que a população percebesse quanta fome está a passar com os seus hipermercados vazios e fechados.