Eu e você sabemos, já o experimentámos. Quando não estamos bem, quando sentimos preocupação, angústia ou ansiedade, falar com alguém sobre o que se passa connosco pode ajudar-nos. Tal e qual pode ajudar-nos ouvir alguém falar sobre como lidou com as suas situações, situações essas que muitas vezes nos são próximas. Ou aceder a informação de qualidade, cientificamente validada e ajustada aos nossos conhecimentos, experiências e necessidades para que possamos melhor reconhecer o que estamos a vivenciar, atribuir-lhe significado e promover mudanças. Para, por vezes com sucesso, desenvolvermos estratégias, incluindo de autocuidado, visando a adaptação a novas situações e a adversidades ou acontecimentos de vida negativos. Temos (mesmo), portanto, de falar sobre saúde mental.
Mas falar sobre saúde mental implica falar também sobre o que a influencia e, muitas vezes, determina. Da pandemia que vivemos ao impacto das novas tecnologias na sociedade e na forma como aprendemos, trabalhamos ou nos relacionamos. Da crise climática e suas consequências, das migrações voluntárias ou forçadas, da guerra que persiste em demasiados territórios pelo Mundo e que voltou à Europa. Da precariedade e das crises socioeconómicas. Da pobreza e exclusão social.
Cresci numa aldeia que, durante muito tempo, via partir pessoas, demasiadas pessoas, e, com elas, “partiam” famílias, relações e a comunidade. Pessoas que, como o meu avô (e depois os meus dois tios), saíam da aldeia e depois do país a pé, boleia aqui, boleia ali, a caminho de diferentes cidades e países, no seu caso de uma Paris onde habitavam mais portuguesas e portugueses do que em qualquer cidade portuguesa. Partiam em busca de romper com uma pobreza destinada a si, à sua geração e às gerações seguintes. De romper com um ciclo de exclusão, por ela potenciado e aprofundado pela falta de liberdade de expressar e viver direitos. Os seus e, naquele caso, os da minha mãe e os meus futuros direitos. Eu sei o quanto a pobreza impacta a possibilidade de saúde, de bem-estar, de autodeterminação. Eu sei o quanto a pobreza e a exclusão limitam e obstaculizam a saúde mental. Eu sei e você sabe-o. Se queremos falar sobre saúde mental, temos (mesmo) de falar sobre pobreza e exclusão social.
Sobre a pobreza e exclusão de há 60 anos. Sobre a de há 30 anos. Sobre a resultante da grave crise sócioeconómica de há cerca de uma década, onde tantas e tantos outros partiram, “partindo”, uma vez mais, famílias, relações e a comunidade. Sobre a de hoje e a de amanhã. Falar e não permitir que naturalizemos a pobreza e a exclusão, que a assumamos com uma inevitabilidade, como um destino.
Podemos, no entanto, perguntar-nos: todas as pessoas que vivem em situação de pobreza têm ou vão ter uma dificuldade de saúde mental ou mesmo desenvolver doença mental? Ou: todas as pessoas com doença mental vivem ou viveram em situação de pobreza e exclusão? Não. E não. Mas, não sendo uma inevitabilidade, há uma relação forte entre a vivência em situação de pobreza e exclusão e os problemas de saúde mental, principalmente o stresse, a ansiedade e a depressão. Relação forte e circular que, porque relevante, não podemos não considerar e que determina que investir na promoção da saúde e da saúde mental seja garantir um mais eficaz combate à pobreza e à exclusão e que diminuir a exposição a situações de pobreza e exclusão seja reduzir um dos principais factores de risco dos problemas de saúde mental.
Se este ciclo penaliza tantas pessoas que nele se encontram e, no fundo, toda a sociedade, é fundamental que o pensemos também nas suas dimensões políticas e sociais. Desde logo porque coloca em perigo a sustentabilidade de serviços, particularmente na área da saúde e da segurança social, além de limitar a possibilidade de desenvolvimento económico do país. Depois porque períodos de incerteza económica, nos últimos anos comuns, constituem uma ameaça à saúde psicológica das comunidades porque, a acrescer ao stresse, ansiedade e sofrimento psicológicos, os factores protectores da saúde mental tendem a enfraquecer, enquanto factores de risco como o desemprego e precariedade, o endividamento ou a perda de estatuto socioeconómico podem aumentar consideravelmente.
Temos (mesmo) de falar sobre saúde mental. De pessoas, da vida dessas pessoas por trás dos impressionantes números. De acesso e de equidade e qualidade no acesso a literacia, recursos e serviços na área da saúde mental, certamente. Mas, se queremos falar de saúde mental, temos também de falar sobre como combater a pobreza e os seus ciclos geracionais e como construir uma sociedade mais inclusiva e mais sensível à diversidade.
Tiago Pereira é psicólogo. Especialista em Psicologia da Educação e do Trabalho, Social e das Organizações, é membro da Direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses, onde coordenou o Gabinete de Crise COVID-19. Foi Assistente Convidado na Universidade de Évora, com responsabilidade em Unidades Curriculares da área da Psicologia da Educação e Comunitária. É consultor, investigador e formador nas dimensões do comportamento, mudança, comunicação, liderança, gestão de equipas, confiança e políticas públicas.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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