Há muito que desejava conhecer o Museu de Tordesilhas, alojado nas célebres Casas do Tratado. Tinha passado ao lado da pequena povoação castelhana dezenas de vezes, sem a notar. Depois, tinha feito algumas vezes o desvio, alertado pelo nome da vila, e chegado à entrada do museu. Mas os estranhos horários espanhóis, com intervalo para almoço até às quatro ou cinco da tarde, e a minha falta de planeamento, estragavam-me a vida.

Desta vez cheguei a horas e entrei nas Casas do Tratado.

O museu não é espetacular, os visitantes não abundam. Há uma pequena exposição, com mapas e algumas reproduções de documentos históricos. Há uma sinalética muito razoável, há um sistema de guia áudio, há legendas em castelhano, português e inglês.

É uma povoação realmente pequena, com um largo, algumas ruas e as históricas Casas do Tratado viradas para o rio Douro. Desfruta-se uma vista desafogada para a planície. E todo o ambiente modesto contrasta com a grandiosidade do evento que aí teve lugar em 1494: as negociações finais para a divisão do mundo entre dois reinos.

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As “Casas do Tratado”, em Tordesilhas. Na realidade, as negociações finais e a assinatura realizaram-se na casa da esquerda, onde sobre a porta principal se notam ainda hoje as armas dos proprietários, encimadas pelas armas reais

Ainda hoje nos custa conceber como Portugal e Castela tenham podido decidir, entre si, como o planeta que estava a ser descoberto pelos navegadores seria distribuído entre os dois. Mas ainda hoje se notam as consequências desse acordo, nomeadamente na América do Sul, em que a parte leste fala português e a oeste comunica em castelhano.

Na escola aprendemos que os portugueses insistiram para que o meridiano do tratado fosse situado mais a ocidente do que o desejavam os espanhóis. Dizem-nos que os castelhanos cederam, inocentemente. Explicam-nos que os cartógrafos portugueses já conheciam ou já suspeitavam da existência das terras a que hoje chamamos Brasil. Forçando o meridiano para oeste, essas terras couberam a Portugal.

Curioso foi conhecer a versão espanhola. Num dos painéis, diz-se que os Reis Católicos conseguiram “marcar as pautas da negociação mas sem revelar o seu grande segredo por medo dos espiões portugueses: que estavam a conceder só mar a Portugal.”

Onde está a verdade e onde estão as ‘fake news’? Na realidade, os castelhanos cederam, essencialmente, grande parte do “mar oceano”, mas deixaram escapar a ponta leste da América do Sul. Os portugueses conseguiram depois expandir-se em terra muito para lá do meridiano de Tordesilhas. Mas os castelhanos alcançaram grande parte do continente. E será que em 1494 havia cartógrafos que sabiam da existência da América do Sul?

A complicar as coisas, tem-se hoje perfeita consciência de uma fragilidade da cartografia da época, que é o deslocamento significativo de alguns registos, nomeadamente o deslocamento para leste dos registos de África e da América do Sul. Os pilotos e homens de ciência portugueses terão sido os primeiros a notá-lo. Em 1514, João de Lisboa observa que alguns registos cartográficos se apresentam deslocados em relação à verdadeira longitude, e explica que esses registos se teriam construído a partir de indicações dadas por pilotos que não corrigiam a declinação magnética das bússolas. Ou seja, quando alguns pilotos diziam que um ponto tal se encontrava a norte de um outro, eles seguiam apenas as indicações das suas bússolas, sem atender a que o norte dado pela bússola, o chamado norte magnético, na maior parte dos locais não coincide com o norte verdadeiro. Sabe-se, e sabia-se já na época, que a diferença pode atingir, até em latitudes moderadas, valores da ordem dos 10, 20 ou mesmo 30 graus.

O grande homem de ciência, marinheiro e militar que foi D. João de Castro (1500-1548) investigou a declinação magnética e revelou a extensão do problema cartográfico. Num trecho célebre, intitulado “Notação famosa e muito proveitosa”, incluído no seu Roteiro de Lisboa a Goa, clarifica a questão com uma notável perspicácia e rigor científico. E exemplifica com o caso que aqui nos interessa: “as praias do Brasil que se opõem ao vento leste estão mais apartadas do meridiano de Lisboa para a banda do ocidente do que jazem situadas nas cartas de marear”.

Na realidade, uma coisa são mapas geográficos, que registam as posições dos diversos pontos num referencial graduado em latitude e longitude. Outra coisa são as cartas de navegação, que pretendiam apenas facilitar os movimentos dos navios, seguindo as indicações da bússola e não tinham pois pretensões de representar corretamente o globo. Só que as representações destas cartas se inseriram naturalmente nos mapas.

O contraste entre estes dois instrumentos geográficos, se bem que tenha sido sentido durante séculos por cosmógrafos e pilotos, só recentemente começou a ser globalmente entendido. O problema foi estudado de forma sistemática pelos historiadores de ciência portugueses Joaquim Alves Gaspar e Henrique Leitão, que publicaram recentemente os primeiros resultados da sua pesquisa. Utilizando métodos numéricos, realizáveis com os modernos recursos computacionais, estes dois historiadores analisaram as deformações introduzidas nos mapas geográficos pela interferência da variação de declinação magnética.

As deformações nos mapas do Brasil do século XVI são agora claramente entendidas não como erros, mas como resultado dos objetivos primeiros das cartas: ajudar a navegação com a agulha magnética.

Linhas da costa do Brasil e de África do célebre Planisfério de Cantino (1502), comparadas com os limites estabelecidos numa projeção moderna. Nota-se o deslocamento para leste do Brasil, favorecendo involuntariamente as pretensões portuguesas sobre a América do Sul. Imagem reproduzida do artigo J. A. Gaspar e H. Leitão (2018), «What is a nautical chart, really? Uncovering the geometry of early modern nautical charts», Journal of Cultural Heritage, 29, p. 133, gentilmente cedida pelos autores.

Foi assim que, ajudados pela sua persistência, e talvez por alguma intuição geográfica, certamente favorecidos pelos erros cartográficos derivados da declinação magnética, os portugueses exploraram as terras brasileiras e nelas espalharam a nossa cultura e a nossa língua. Foram mais longe do que Tordesilhas.