Tantas voltas dá a vida
tantas voltas dá o Mundo
E depois volta não volta
Muda tudo num segundo

Este refrão de uma canção cantada pelo Tim, escrita por João Monge e composta por João Gil para os Rio Grande ilustra bem aquilo que tantas vezes acontece nas mais variadas circunstâncias da vida. Tudo muda num instante.

Por efeito colateral da pandemia Covid-19, as empresas e os trabalhadores foram forçados a adaptar-se rapidamente ao teletrabalho. Mudança temporária ou definitiva é agora a questão levada a debate em muitas organizações. A nova realidade trouxe para cima da mesa a discussão em torno da conciliação trabalho e vida pessoal (work-life balance), tema que pela sua importância, não pode nem deve ser varrido do debate público nem do debate interno das organizações no regresso ao novo normal pós-pandemia.

Esta reorganização do trabalho deve-nos levar a refletir sobre os aspetos que devemos guardar para o futuro:

  1. Mais autonomia dos trabalhadores: A ideia de deixar os trabalhadores decidir onde e quando realizar o trabalho, podendo não apenas definir os seus horários, mas também podendo prestar trabalho noutros lugares que não no posto de trabalho na empresa. Esta é apontada como uma das principais formas de atrair e reter talento. Não será possível em todos os tipos de trabalho. No entanto, em todos os casos em que tal é possível, o uso das novas tecnologias permitirá hoje uma flexibilidade que deve em muito ser aproveitada. A flexibilidade de horário pode ser a forma de ajustar as necessidades individuais aos interesses da empresa, alcançando-se o equilíbrio sem redução dos tempos de trabalho.
  2. Teletrabalho: o teletrabalho veio para ficar, sempre que as características das funções assim o permitam, mas deverá articular-se com o bom funcionamento das equipas.
    É fundamental salientar que uma das características do teletrabalho é uma maior desregulação, a qual funcionará sempre em dois sentidos. Há mais autonomia do trabalhador, mas isso representa mais responsabilidade. Há menos controlo pelo empregador, mas esfuma-se a fronteira entre tempo de trabalho e tempo de descanso. Neste sentido, é fundamental refletir e regulamentar o direito à desconexão, estabelecendo limites e protegendo, simultaneamente, os interesses dos trabalhadores e empregadores. Por outro lado, passados os tempos de Estado de emergência e os regimes temporários de maio, em pleno estado de calamidade, deixou de estar prevista a designada “obrigatoriedade” de prestação de teletrabalho. O mesmo é dizer que se regressou ao regime geral do Código do Trabalho que, numa perspetiva pós-pandemia, está agora desajustado, burocrático, de difícil aplicação. É forçoso flexibilizar o regime de teletrabalho, de modo a que possa ser um verdadeiro instrumento a favor da conciliação trabalho-família ou vida pessoal.
  3. Outras formas de Flexibilidade de Trabalho: O teletrabalho não esgota as formas de flexibilização de horário. Concentração de horário, isenção de horário, adaptabilidade, banco de horas, part-time são instrumentos que existem e podem e devem ser melhorados. Em 2019 foi revogado o regime do banco de horas individual, regime que faria todo o sentido, uma vez que permite um ajustamento do trabalho aos fluxos de trabalho negociado individualmente. A revogação desse regime é um retrocesso na afirmação individual dos trabalhadores portugueses.
  4. Potenciar o part-time como verdadeira possibilidade e opção de carreira. O trabalho a tempo parcial é uma das formas de compatibilizar trabalho e vida pessoal, sofrendo, contudo, de um estigma: está associado a empregos de maior fungibilidade, onde é relativamente indiferente a pessoa que ocupa o posto de trabalho e, como resultado, o trabalho a tempo parcial é visto como um trabalho de menor valor, logo, menos apetecível. Se a somar aos referidos aspetos, a prestação de trabalho a tempo parcial implicar receber proporcionalmente menos relativamente a um salário já por si baixo, estão reunidos os condimentos necessários para o insucesso deste modelo de organização de trabalho. A valorização do trabalho parcial como opção de carreira deve ser efetivamente encarada, podendo aqui serem oferecidos incentivos fiscais ou contributivos às empresas, uma vez que dessa forma não só se estimula a existência de esquemas alternativos de organização de tempo de trabalho como permitem a contratação de mais trabalhadores.
  5. Trabalhar mais em menos horas: Como bem conclui Henrique Raposo no artigo no site da Rádio Renascença “A solução não é o teletrabalho, é sair às cinco” Se organizarmos o trabalho de forma a sairmos às cinco, seremos mais produtivos no escritório e seremos sobretudo melhores pais em casa – uma utopia, eu sei. Mudar um hábito tão enraizado como o almocinho é talvez impossível.

Portugal sofre um défice de produtividade estando muito abaixo da média europeia. Similarmente, é um dos países da União Europeia onde se está mais horas no local de trabalho. É essencial arriscar mudar de paradigma. É possível trabalhar menos horas e produzir mais e este devia ser um verdadeiro desígnio nacional.

As organizações sairão mais fortes desta pandemia se souberem aproveitar o que é bom de guardar desta pandemia. A virtude estará, pois, em encontrar um equilíbrio entre o crescimento e bom desenvolvimento das organizações e entre a possibilidade de garantir mais flexibilidade e autonomia aos trabalhadores com uma melhor conjugação entre trabalho e vida pessoal.

Possivelmente, o grande aspeto que a pandemia pôs em evidência em relação ao trabalho, é que em cada trabalhador está uma pessoa, com a sua liberdade, com a sua vida e opções, com a sua autonomia e vontade e com a sua saúde e não apenas um elemento numa massa coletiva.

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