A forma como o trabalho humano é percebido alterou-se ao longo da História. Nas sociedades da Antiguidade Clássica, o trabalho físico ou braçal era incumbência dos escravos e o ócio era tido como o ideal dos cidadãos (quem possuía propriedade e riqueza), por permitir o cultivo de virtudes. Persistindo a escravatura, na Idade Média, o conceito de trabalho passa também a incluir a actividade doméstica e os ofícios (transmitidos de geração em geração) e, com a Reforma Protestante (sec. XVI), passa a ser entendido como meio de salvação, em contraste com a condenação do ócio. No Renascimento, a par da percepção do domínio do Homem sobre a Natureza, o trabalho é encarado como libertação e assiste-se à ascenção da burguesia, com o mercantilismo e a progressão tecnológica (XVIII). A Revolução Industrial traz a invenção da máquina a vapor, a vida laboral deixa de se confundir com a vida doméstica e emergem os empregados fabris que, auferindo baixos rendimentos e incapazes de suprir as necessidades básicas, despertam as primeiras preocupações sociais, com a Igreja Católica a desempenhar um importante papel nesse contexto. Mas é apenas no séc. XX que surge a ideia de orientação vocacional e da necessidade de realização e de satisfação pessoal, passando o trabalho a ser visto não apenas enquanto exigência para a subsistência, mas também enquanto vocação do Homem.
A concretização da pessoa humana no trabalho surge da necessidade e apelo ao desenvolvimento pessoal (incluindo imaginação, criatividade e memória), da aspiração a fazer parte da Criação e da procura de recompensa pelo esforço e dedicação, para uma vida digna própria e da família, proporcionando a conquista de propriedade privada e a concretização de alguns sonhos e ambições. E mesmo que, num cenário de monotonia laboral, arrastada ao longo de anos, o homem é convidado a desenvolver virtudes no trabalho, como rectidão, obediência, honestidade, humildade, cumprimento do dever, responsabilidade, justiça.
Neste domínio, e excluindo a condição de “trabalhador por conta própria” (intencionalmente não abordada neste artigo), o trabalho envolve duas partes que se complementam e que devem colaborar em união: o empregador, que providencia trabalho e paga salário; e o empregado, que desenvolve funções laborais para as quais é contratado. Numa perspectiva marxista, opondo classes, a linguagem tendenciosa comum refere-se-lhes, frequentemente, como “patrão” e “trabalhador”, carregando a ideia falaciosa de que o primeiro não trabalha e apenas explora. Mais recentemente, a par do politicamente correcto e da revolução social e cultural por via da linguagem, qual “novilíngua” num mundo globalizado, a palavra “empregado” passou a ser substituída por “colaborador”, qual conceito “bonito” que, numa perspectiva de publicidade liberal, insinua que não há uma hierarquia no ambiente laboral, como se a vergonha imperasse no uso da palavra “empregado”.
A relação entre empregador e empregado assume particular relevo com o eclodir da Revolução Industrial. Assistindo-se cada vez mais à exploração do Homem no contexto laboral, a 15 de Maio de 1891, o Papa Leão XIII publicou a renomada Encíclica Rerum Novarum, onde pode ler-se: “de nada serve o capital sem trabalho, nem o trabalho sem o capital”. O Papa vem, assim, alertar para a necessidade do respeito pela dignidade do Homem no trabalho, do papel da família, da propriedade privada e sua relação com o Estado, condenando o próprio comunismo, mas exaltando a promoção da concórdia das “classes”, a par de preocupações sociais, não apenas dos operários, mas também do patronato.
Com o crescimento do capitalismo à escala global e o livre mercado, com aumento desenfreado dos níveis de consumo, começa a ser dada crescente atenção à dignidade da pessoa humana. Se, por um lado, o crescimento empresarial tem criado postos de trabalho, o grande desenvolvimento tecnológico e robótico mais recente tem trazido desemprego, pela dispensa de empregados, antes úteis para certas funções. Tal resulta na cada vez maior exigência de diferenciação profissional, emergindo, lado a lado, o egoísmo, a competitividade e a ambição desmedida por bens e capital.
Na entrevista “Felicidade sem utopia”, de Laurinda Alves a Henrique Rojas, o psiquiatra dedicado ao estudo da felicidade refere: “Hoje [na vida profissional] há dois extremos: as pessoas que não têm trabalho e as pessoas que só têm tempo para trabalhar e a ideia é tentar viver num ponto intermédio.” Ou seja, se o desemprego é preocupante, por privar as pessoas da sua realização profissional, pessoal e familiar, e pôr em risco a segurança financeira, o apelo ao sucesso no ambiente laboral tem convertido o Homem do Ocidente em escravo do trabalho e vítima, não só de terceiros, mas de si próprio. As horas e dias de descanso, antes também dedicados às artes, ao enriquecimento cultural, à reflexão filosófica ou ao culto religioso, passaram a ser substituídas por mais horas de trabalho “voluntário”, ocupadas frequentemente no próprio lar, em frente a um ecrã de computador, diminuindo o tempo e espaço que deveriam estar reservados para a família, para a comunhão consigo e com os outros, para o estudo e silêncio, favorecedores do crescimento da vida interior. Isto é, esta progressão laboral é frequentemente conseguida à custa do isolamento e embotamento, com perda de humanidade e compreensão para com o próximo. Basta atentar a jovens gestores que, formatados desde cedo nessa cultura académica, gerem empregados em folhas de Excel, incapazes de olhar e compreender o que os move e inquieta, quais peças de xadrez que se alocam “ali e acolá”, consoante o maior interesse do Conselho de Administração, que dita objectivos a cumprir. Daqui resulta a frustração dos empregados que, apesar de se sentirem desesperançados e até despeitados, se vêem obrigados a manter o posto de trabalho por necessidade, vivenciando a angústia diária de não conseguir dar resposta a áreas da vida pessoal e aspirações próprias, caindo no desânimo e, não raras vezes, em depressão e ansiedade, destrutivos da pessoa humana. Qual ciclo vicioso, tal desmotivação não se traduz na intencionada melhoria da produtividade, indo contra o próprio interesse do empregador. Talvez seja esta a exploração laboral do século XXI: o total desprezo pela dimensão subjectiva e transcendente do Homem, antes respeitada no contexto da sua vivência religiosa e hoje em dia menosprezada. Assiste-se, portanto, a duas realidades no ambiente laboral: por um lado à idolatria do trabalho e, por outro, à submissão ao trabalho, de forma desinteressada, por necessidade.
Bibliografia: Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Libreria Editrice Vaticana, 2004; João Paulo II, Papa. Carta Encíclica Laborem Exercens, 14 de Setembro de 1981; Leão XIII, Papa. Carta Encíclica Rerum Novarum, 15 de Maio de 1891.
A autora não reconhece o AO 1990.