1 A Operação Marquês teve o condão de pôr o país a falar de corrupção. Volto ao tema que abordei no último artigo, agora numa perspetiva eminentemente prática de algo que pode e dever ser feito ainda antes das próximas autárquicas, haja vontade política e algum desembaraço administrativo. Evidentemente que o fenómeno da corrupção é multi-dimensional e tem de ser atacado em várias frentes desde a prevenção, à identificação dos riscos, à investigação e à punição. Não há medidas isoladas milagreiras, e o pacote apresentado pela ministra da Justiça é certamente um passo importante. O PS tem agora a oportunidade de fazer aquilo que não fez há quinze anos que é mostrar que quer combater a corrupção. Sim, João Cravinho tem razão em dizer que no tempo de Sócrates o PS rejeitou liminarmente avançar com um sistema eficaz de combate à corrupção. A palavra chave aqui é eficaz. Não é de admirar, sabendo o que hoje sabemos, da Operação Marquês e também de como nada de importante se faz hoje num partido político contra a vontade do seu secretário-geral. A posição do PS de hoje não deveria ser a de criticar ou mesmo atacar Cravinho – uma das figuras mais respeitáveis do PS e em excelente forma – mas sim em mostrar, nas palavras e nos atos, que o PS de António Costa é diferente do de Sócrates. Já o mostrou na nova atitude face às finanças públicas e também na última legislatura nos trabalhos da comissão da transparência que foi proposta sua. Agora fá-lo com a meritória proposta de Francisca Van Dunen. Por seu turno o PSD, em vez de querer tirar dividendos políticos, deve também assumir os seus casos passados de corrupção, envolvendo ex-membros do governo, e a responsabilidade de ser um dos dois maiores partidos em Portugal. O combate à corrupção não é de esquerda nem de direita é uma tarefa do regime.

2 O maior risco de corrupção radica nas situações em que titulares de cargos políticos ou públicos, ou órgãos colegiais (da República, regionais ou locais), podem efetuar decisões discricionárias cuja consequência seja uma variação patrimonial da ordem dos muitos milhares ou milhões de euros em empresas ou particulares. Desde decisões sobre permitir ou não uma OPA a uma empresa publica, à seleção do vencedor na contratação pública, passando pela revisão de um Plano Diretor Municipal mais permissivo ao imobiliário. A corrupção aumenta com os tempos que a justiça leva a decidir ou que a administração leva a deliberar, licenciar ou fiscalizar. A ineficácia da justiça, leva à assunção por gente sem escrúpulos de que o crime compensa porque acabará por prescrever. A ineficiência da administração, quando e onde existe, leva a que alguns, a quem ética é uma palavra desconhecida, a usar esquemas ilícitos para acelerar processos.

Sem prejuízo de haver sempre melhorias a implementar nas leis existentes,  pode-se desde já concluir que duas das coisas que mais contribuirão para o combate à corrupção, não são novas leis,  é o aumento da eficiência e eficácia quer da justiça quer da administração pública.

3 A nossa cultura política é a de que quando há um problema mediático legisla-se. É o que se está a fazer agora. Aquilo que não se faz é olhar para as leis que existem, fazer a avaliação da sua implementação, passados alguns anos, e mudar caso necessário. Em 2019 foram aprovadas duas leis uma que regula o exercício de funções dos titulares de cargos políticos e algos cargos públicos (Lei 52/2019) e outra que aprova o Estatuto da Autoridade da Transparência (Lei Orgânica 4/2019). Não são leis perfeitas, coisa que não existe, e tive até ocasião de votar contra alguns artigos pela permissividade dada à recepção de ofertas e hospitalidades. De qualquer modo, a ser implementadas representariam um passo em frente na transparência no exercício de funções públicas. O modelo previsto na lei pode resumir-se no seguinte. Há um vasto leque de titulares de cargos políticos, equiparados e públicos que têm a obrigação de fazer uma declaração única de rendimentos, património, interesses, impedimentos em diferentes ocasiões. Quando assumem funções, no exercício de funções, se o seu valor patrimonial aumentar significativamente (mais de 50 vezes o salário mínimo nacional), no término de funções e três anos após finalizadas as funções. Através destas declarações se poderá saber se houve acréscimo patrimonial injustificado e nesse caso tributa-lo à taxa de 80%! É criada uma entidade da transparência junto do tribunal constitucional (que recebe recursos do governo para instalar fisicamente a entidade e criar uma plataforma eletrónica para processar essas declarações) que em caso de violação de deveres declarativos pode remeter quer para o Constitucional, para os tribunais administrativos e fiscais (sanções não penais) ou para o Ministério público. No caso das autarquias, municípios e freguesias de mais de 10.000 habitantes devem ter não apenas um código de conduta (para lidar entre outros com ofertas e hospitalidades), mas também um registo de interesses disponível num sítio da página do município. Na entidade da transparência devem constar as ligações (hyperlinks) para todos os registos de interesse municipais  e nada obsta a que também constem as ligações para os códigos de conduta. Assim facilmente, se poderá verificar na entidade da transparência em que medida a lei está a ser aplicada nas autarquias.

4 Já há, assim, nas leis atuais, instrumentos para promover a ética nos organismos públicos, através da sotf law dos códigos de conduta, que regulam entre outras coisas aquilo que pode ser aceite no exercício de funções públicas e uma tentativa de controlo e fiscalização do enriquecimento injustificado. Acontece que estes milhares de declarações que deverão ser entregues em papel já a seguir às eleições autárquicas, até que a plataforma eletrónica para as submeter seja criada, no essencial não irão ser analisadas pois é impossível tal tarefa manual por parte do Tribunal Constitucional. O que falta fazer passado este tempo todo? O essencial é haver recursos financeiros, humanos e a plataforma eletrónica para submissão das declarações. Recursos financeiros há, foram aprovados no Orçamento do Estado de 2021. Humanos depende apenas do Presidente Constitucional. Antes do mais da sua iniciativa de apresentar uma lista para membros da entidade da transparência a ser votada favoravelmente por pelo menos oito conselheiros. Depois de dotar rapidamente a entidade de recursos humanos administrativos e técnicos. Não é preciso esperar sequer por contratação pois pode o Presidente recorrer à mobilidade de técnicos de outros serviços. Temos uma agência para a modernização administrativa que agora terminou um portal da transparência e certamente não se importaria de dispensar um ou dois técnicos para em dois ou três meses desenvolver a plataforma informática para o tratamento das declarações. É assim possível que independentemente de obras no edifício avance a entidade da transparência.

Não é apenas de mais leis que necessitamos para promover a transparência e combater a corrupção. É de aplicar as que já existem. No caso da transparência ela depende agora sobretudo do Presidente do Tribunal Constitucional e do acompanhamento e exigência que lhe deve fazer a  Assembleia da República para cumprir a lei de forma atempada.

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