Numa carta de 11 de novembro 1755, como resposta ao Governador do Estado da Pensilvânia sobre uma questão de impostos e defesa durante a Guerra Franco-Indígena (1754-1763), Benjamim Franklin, entre muitas outras frases memoráveis, escreveu que “[a]queles que abandonem a Liberdade essencial para adquirir um pouco de Segurança temporária, não merecem nem Liberdade nem Segurança”.
Esta frase é muitas vezes utilizada cada vez que existem crises que desencadeiam uma resposta desproporcional, maioritariamente por aparelhos governativos, seja através da suspensão de leis essenciais, maior vigilância de cidadãos e legisladores, e mais recentemente, com um quase omnipresente controlo da vida digital. A lógica da frase de Franklin, discutível no sentido do contexto da carta ao Governador, é normalmente entendida como sendo melhor preservar a liberdade, do que permitir a sua erosão, pequena ou substancial, em troco da promessa de sermos protegidos de maus atores.
Contemporaneamente, existem cada vez menos defensores deste axioma (o vosso cronista inclui-se neste grupo), uma vez que conveniência passou a ser uma necessidade com tal intensidade que muitos de nós deixam que nos nossos telemóveis, nos nossos computadores, e nas nossas ruas, sejamos seguidos para onde formos e termos documentado quase tudo o que fazemos. Porém, também é compreensível que muitos dos nossos vizinhos estejam confortáveis com essa troca. Afinal, não faz parte do nosso léxico dizer que “quem não deve não teme”?
Outra frase que se utiliza, de uma forma mais jocosa, é: “Sou velho suficiente para me lembrar de…”, seguida por qualquer evento recente que pessoas fingem, ou não querem, lembrar. O vosso cronista é “velho o suficiente” para se lembrar do tempo da Troica em Portugal. Este não é o espaço para revisitar o porquê de tal ter acontecido, mas para lembrar as dificuldades pelas que muitos de nos passámos. Sei que o leitor, se tiver a idade para isso, concordará que foram tempos difíceis: perdas de rendimentos, quebras nos investimentos, diminuição de apoios sociais e de tempo de descanso. Ficou então conhecida a expressão, infeliz, de Fernando Ulrich: “O país aguenta mais austeridade?… Ai aguenta, aguenta”. E realmente, aguentámos. Com muitas dificuldades, garantidamente. Com muito sofrimento, desespero e aflição. Porém, em nenhum momento desses anos árduos pensei, “pois, mas para ter o preço dos ovos mais baixo, vou abandonar viver numa democracia”.
Quem acompanhou, mesmo que tangencialmente, o post-mortem da eleição presidencial nos Estados Unidos pode se ter cruzado com a descrição, mesmo que anedótica, que alguns americanos que votaram em Trump o fizeram por causa do “preço dos ovos”. Mesmo eleitores que se esperava que valorizassem mais outras questões sociais e políticas. Como acontece muitas vezes, a produção de um meme gera uma simplificação reducionista. Porém, neste caso até se justifica pela forma como muitos votantes, em diferentes partes do país, explicaram o seu voto, indicando que foi realmente algo como o “preço dos ovos”, expressão que pode servir para qualquer outro bem considerado essencial que faz parte da lista de compras diárias, leite, fruta, batatas fritas, ou o preço do combustível, para dar alguns exemplos.
Já fiz o argumento neste espaço que se dá um valor excessivo à razão que são dificuldades económicas que justificam votos em populistas radicais. Que existam pessoas que vivem em grandes dificuldades, isso é certo. Porém, também há aqueles que têm a perceção que vivem em grandes dificuldades. Na eleição presidencial dos Estados Unidos, dois terços dos eleitores consideravam que a economia do país se encontrava em pior estado comparado com 2020, quando indicadores mostravam o contrário; menor inflação, aumento de rendimentos, mais emprego, mais produção. Porém, nada conseguiu competir, aparentemente, com o “preço dos ovos”.
Nos Países Baixos, os neerlandeses têm o terceiro melhor valor no Índex de Produto Interno Bruto, por bitola de poder de compra, nos países da União Europeia. A Áustria, tem o quinto e a Alemanha o oitavo (dados do Eurostat, março 2024). Porém, os partidos de extrema-direita, como são o Partij voor de Vrijheid (PVV), o Freiheitliche Partei Österreichs (FPO) e a Alternative fur Deutschland (AfD) ou ganham eleições, como nos Países Baixos ou na Áustria, ou são a segunda força eleitoral, como é na Alemanha. Quem trabalha na área da ciência política é repetidamente confrontado com argumentos que são “as dificuldades”, a “incapacidade de subir no elevador social”, os “jovens não terem melhores vidas que os pais” para explicar tais votações. Se estas preocupações são legítimas, e devem ser alvo de atenção de governos, setor privado e sociedade, não deve ser porque o “preço dos ovos” está mais alto que a escolha mais lógica é eleger autoritários, populistas radicais, e, no caso de alguns dos exemplos acima, com ligações a ideologias fascistas. Ainda mais quando nos avisam que tipo de governação antiliberal e antidemocrática querem implementar.
Trump prometeu tirar direitos, remover forçosamente imigrantes, suprimir imprensa, aumentar tarifas, eliminar serviços, desregular empresas e cortar impostos aos mais ricos. Porém, o “preço dos ovos” venceu o dia. Na Alemanha, a AfD promete poluir mais o ambiente por negar alterações climáticas, ser hostil contra imigração, tirar direitos a minorias, ser pró-russa e anti União Europeia. No entanto, 84% dos seus eleitores concordam que “eu não me importo que a AfD tenha sido rotulada como de direita extremista, enquanto se preocuparem com os assuntos certos”. Seguramente o “preço dos ovos” está nesses assuntos. O mesmo se vê na Áustria, ou em França, ou nos Países Baixos, países onde europeus têm das melhores condições de vida.
Não defendo com esta tese que sejamos Franciscanos, Marxistas ou Maoistas, reflexos também de sistemas autoritários, mas de existir realismo e perspetiva numa sociedade capitalista. Até podemos conceder não temos a vida que gostávamos de ter, nesta era abundância e ostentação. Que não temos as oportunidades que achamos merecer numa sociedade moderna e cosmopolita. Contudo, não vivemos numa guerra local ou global, ou em Estados falhados, ou com a miséria como, por exemplo, se vivia no início do século XX. Queremos explorar o nosso potencial como seres humanos e cidadãos, e apesar de podemos não ter todos os meios para isso, temos segurança, sistemas de apoio, e sociedades funcionais. Daí, não se deve abandonar o projeto de viver numa democracia representativa em prol de populistas radicais e charlatões políticos (basta olhar no que aconteceu na Hungria), para termos “ovos mais baratos”.
Esta não é só uma questão para políticos, ou para instituições, ou para académicos. É, principalmente, uma decisão de todos nós. E não é preciso ser “velho o suficiente” para ter vivido – ou instruído o suficiente para saber – o que é viver em momentos de grandes dificuldades, e, no entanto, continuar a acreditar na democracia liberal como o melhor sistema de governação.