O escândalo noticiado pelo The Guardian em torno da gigante digital Uber trouxe-me à memória a velha expressão popular de que “não é com vinagre que se apanham moscas”, provérbio que os gestores da empresa por certo desconheciam, apesar de o terem aplicado abundantemente na sua actividade.
As trapalhices da tecnológica são muitas, algumas delas que não ultrapassam o limiar do ético e probo, outras roçando ou ultrapassando grosseiramente a fronteira do legal. Quero, todavia, focar-me em dois particulares aspectos deste escândalo. O primeiro prende-se com o esquema empregue pela Uber para entrar em novos mercados e a magnânima lição de desonestidade que a empresa oferece a quem com ela queira aprender.
Segundo explica a imprensa, sempre que iniciava a sua actividade numa nova cidade a Uber recorria à mesma estratégia: subsidiava intensamente os seus serviços, tanto do lado da oferta como da procura. Recorde-se que o modelo de negócio da tecnológica, no âmbito do transporte individual de passageiros, é linear: a Uber opera uma plataforma digital que coloca em contacto quem precisa de uma boleia (o consumidor ou utilizador) e o profissional disponível para a dar (o condutor ou prestador). Todavia, para que a operação seja sustentável e apelativa, principalmente quando penetra num novo mercado, é necessário que duas condições fundamentais se encontrem reunidas: por um lado, que existam condutores suficientes para garantir uma experiência positiva aos consumidores (designadamente em termos de tempos de espera e de preços da corrida); por outro lado, é preciso incentivar o consumo tornando os preços pagos na plataforma competitivos com o táxi. Como estamos perante condições dependentes entre si, a Uber aliciava simultaneamente os condutores, pagando-lhes elevados montantes por viagem de modo a atraí-los para a plataforma, e os utilizadores, oferecendo‑lhes descontos ou tarifas baixas. E assim se faz um negócio: com os elevados financiamentos dos investidores, a Uber subsidiava a procura e a oferta, transformando a plataforma digital num elemento imprescindível do modo de vida urbano.
Evidentemente que este modelo de negócio, não sendo ilícito, não é sustentável a longo prazo. Mas é aqui que entra o juízo de censura: uma vez bem estabelecida num mercado, e já depois de atrair milhares de condutores para o seu serviço, a Uber começava a eliminar os incentivos, cobrando aos motoristas crescentes comissões sempre opacas e calculadas com base em “tarifas dinâmicas”. De repente, um prestador precisava de trabalhar 14 horas para conseguir o que antes ganhava em apenas 5 horas. No fundo, a Uber atraía as moscas (sabe-se agora que internamente os condutores eram tratados pelos executivos seniores da empresa como “stock” ou “liquidez”, uma verdadeira mercadoria controlada pela empresa e pelos seus algoritmos) com mel (a promessa de bons proventos) para depois, depois de presas, lhes servir o vinagre da desilusão e uma vida difícil onde os ganhos por hora facilmente ficam (após despesas com veículo, combustível e comunicações) abaixo do salário mínimo.
O segundo aspecto da investigação do The Guardian que merece destaque é a questão da integridade académica. A ser verdade o noticiado pelo jornal, alguns dos mais reputados economistas franceses, alemães e norte-americanos receberam da empresa generosas somas (que podiam chegar aos cem mil euros) para publicarem e divulgarem trabalhos (pretensamente) científicos em que enalteciam o novo modelo económico de que a Uber é pioneira. Esses trabalhos eram posteriormente enviados à comunicação social, acabando reproduzidos ad infinitum em imprensa favorável à tecnológica e à economia colaborativa, sem que neles constasse a informação de que haviam sido pagos pela própria empresa.
Nada disto surpreende, na medida em que a academia, não obstante a idílica visão que de si mesma tem, é muitas vezes antro de vícios e de flagrantes faltas de ética e de compromisso para com a ciência e o conhecimento, com pareceres e opiniões feitos à medida de quem os pede, desde que tenha bom dinheiro para os pagar. Ninguém duvida que os académicos, antes de serem negociantes do saber, prestam um relevante e imprescindível serviço público que depende da confiança da sociedade na sua probidade e na imparcialidade dos resultados das suas investigações. Talvez fosse bom, para evitar escândalos deste género que erodem aquela confiança, começar a pensar a sério na integridade académica e encontrar mecanismos de transparência e publicidade para não sermos nós as moscas apanhadas desprevenidas com o mel da ciência feita à medida de certos interesses.