Nos últimos tempos, Portugal tem sido palco de expectativas fervilhantes com a visita do Papa, a propósito das Jornadas Mundiais da Juventude. Faço um saldo muito positivo deste evento, mas a visita do Papa trouxe consigo uma questão que suscita controvérsia: a lei de amnistia.

O conceito de amnistia foi sempre alvo de debates intensos. Por um lado, a amnistia pode ser vista como um acto de compaixão e unificação, promovendo a “cura de feridas antigas” e permitindo uma reinicialização para os envolvidos. Por outro lado, é criticada por potencialmente subverter a busca pela justiça e por criar uma sensação de impunidade perante ofensas passadas.

O cerne da questão é a linha ténue entre justiça e interferência do estado nas relações privadas. Com a promulgação da Lei 38-A/2023 reacendeu-se um debate já existente. A amnistia pode ser vista como um acto de clemência e um meio de promover a reconciliação. Contudo, a amplitude desta lei, em particular, tem suscitado preocupações sobre a ingerência do Estado nas decisões das empresas e nas sanções disciplinares a aplicar aos seus trabalhadores.

Um dos pontos de preocupação reside, precisamente, na limitação do poder de direcção dos empregadores privados em relação aos seus trabalhadores, pois a possibilidade de aplicar sanções disciplinares conservatórias, em função desta lei, foi restringida. Em suma, as empresas não poderão aplicar sanções conservatórias a infracções disciplinares (que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela referida lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão) praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, pois são amnistiadas pela Lei 38-A/2023, por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, o que, de certa forma, prejudica a capacidade de as empresas manterem um ambiente de trabalho disciplinado e eficiente.

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No passado, a vinda de João Paulo II a Portugal também originou a amnistia de algumas infracções, através da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio. Porém, na altura, houve sensibilidade suficiente para excluir os ilícitos laborais do âmbito de aplicação da lei, o que, lamentavelmente, agora não sucedeu.

Com a vinda do Papa, há quem veja a oportunidade de, simbolicamente, adoptar uma amnistia para promover uma reconciliação nacional. No entanto, tal medida requer uma abordagem equilibrada e bem pensada. Com bom senso.

A amnistia não deve ser uma solução simplista. Deve ser precedida por um debate nacional profundo e aberto, que parece que foi esfumado pela discórdia sobre o investimento nas Jornadas Mundiais da Juventude. Os nossos decisores, ao invés de terem conduzido o debate com base nos valores democráticos, na laicidade do Estado e nos direitos individuais, deixaram de parte os impactos desta lei a longo prazo na nossa sociedade e nas relações privadas e despromoveram, completamente, o princípio da laicidade do Estado.

Nas relações laborais, as sanções disciplinares têm um papel crucial na manutenção da ordem e da eficiência dentro das empresas. Através da aplicação dessas sanções, as empresas comunicam claramente as consequências de comportamentos indesejados ou violações das regras internas. Isso não só promove um ambiente de trabalho disciplinado, mas também contribui para a prevenção geral, dissuadindo outros de cometerem infracções semelhantes. No entanto, a introdução de uma amnistia altera, significativamente, essa dinâmica. Aqueles que poderiam ser submetidos a sanções disciplinares podem agora perceber que as consequências das suas acções podem ser mitigadas ou eliminadas através do perdão colectivo, o que desvirtua o efeito dissuasor das sanções disciplinares.

O Papa trouxe uma mensagem de paz e compaixão e a Justiça não é incompatível com esses valores. Uma amnistia pode ser uma ferramenta poderosa para curar feridas antigas, mas deve ser implementada com a máxima responsabilidade. Manter um equilíbrio entre a justiça, o perdão e a dissuasão é essencial para garantir que a sociedade continua a operar num ambiente onde as normas são respeitadas e as consequências são claras.

A Lei 38-A/2023, que entrará em vigor no próximo dia 1 de Setembro, deixa-nos com a sensação de que tanto o Estado como a Igreja ultrapassaram os limites da esfera privada, o que gera um desequilíbrio entre o poder governamental e a liberdade pessoal e afecta, de forma grave, a estabilidade e dinâmica das relações laborais, o que poderia (e deveria) ter sido evitado.