Se um país fosse total e perfeitamente democrático, as suas eleições centrar-se-iam numa única questão: a política.
E embora a minha afirmação possa parecer óbvia, ela contém múltiplos significados. Significa que os cidadãos não têm de escolher candidatos com base no seu género ou raça para combater os padrões retrógrados da sua sociedade. Significa que estes não estão a seguir cegamente demagogos porque o seu país desceu a um ponto em que as pessoas são em grande parte surdas aos apelos da razão. Significa que, felizmente, a sua escolha não se tem de basear no facto do futuro Presidente respeitar a natureza democrática e as instituições do país, confiando que nenhum dos candidatos se considera acima do Estado e da Justiça.
É esse, no fundo, o objetivo de uma eleição democrática. A América nunca chegou a esse ponto – mas já esteve perto. Talvez até mais perto do que qualquer outra nação – à primeira vista – se ignorarmos o racismo sistémico que acontece nas suas prisões ou a desigualdade gritante que assola as suas cidades. A eleição de Barack Obama em 2008 foi o auge desta quase vitória democrática, um exemplo brilhante, se bem que talvez ingénuo, de um país a avançar.
Só que, como todos sabemos, o arco moral do universo é longo. Quando o começaram a esticar em direção ao progresso, aqueles que acreditavam que tinham sido deixados para trás nesta assustadora transição social, puseram-lhe travão a fundo. Não creio que estas pessoas – pessoas que vivem em comunidades rurais, proprietários de armas e “amantes de Jesus”, frequentemente caricaturados como a base de fãs de Donald Trump – devam ser demonizadas. No meio de uma revolução tecnológica e de uma crise financeira, foram de facto esquecidas e deixadas para trás. E sim, enquanto muitos deles são racistas e homofóbicos natos, outros são simplesmente medrosos. Embora isso não justifique nada, explica muitas coisas importantes.
Mas esse é um assunto completamente diferente e que não é útil debater neste exercício. Embora possa ser uma conversa interessante à hora do jantar, a sete dias das eleições, “como é que chegámos aqui?” não deve ser a questão em cima da mesa. O que pretendo remarcar – de uma forma reiterada e já demasiado longa – é que estamos agora aqui, muitos passos atrás de onde estávamos, num lugar onde eleições completamente democráticas, no sentido em que a política é o nome do jogo, é um luxo que os Americanos não têm.
Então, o que têm? A possibilidade de uma escolha, com base nos princípios e no caráter de ambos os candidatos, nas suas carreiras e cadastros, na confiança e respeito de cada um pelo país que serão encarregues de liderar, pelo seu povo e pelas instituições, pelos processos, leis e cultura que tibiamente o mantêm unido. A maioria de nós esquece que a democracia é uma experiência frágil e longe de ser impenetrável. Não ter esta consciência é viver demasiado isolado na sua própria vida, prescindindo de lançar mão a um livro que conte as histórias da Europa antes de 1945, ou terem ligado a televisão no dia 6 de janeiro de 2021.
Será que o critério de votar não para o que a democracia pode oferecer mas apenas pela própria democracia é um critério pouco aspirativo? Assim é, de facto. Será Kamala Harris a pessoa ideal para o cargo? Longe disso. O seu historial como procuradora criminal da Califórnia, quando prendeu milhares de pessoas por posse de marijuana, é lamentável, e a sua repetição robótica de “apoiaremos sempre o direito de Israel a defender-se” como primeira resposta a qualquer pergunta que lhe seja feita sobre Gaza mostra como ainda estamos longe de um país onde os políticos valorizam verdadeiramente os princípios acima do poder, dos interesses partidários e, para sempre, da moeda política mais importante: o dinheiro.
No entanto, se Kamala fizer a transição para a Sala Oval, não temo que seja acusada de crimes de corrupção, abuso de poder ou agressão sexual. Não temo que tente consolidar o seu poder e o dos que a rodeiam até que a América seja inteiramente moldada pela sua visão e não pelas diversas vozes e experiências que tornam o país tão único. Não temo que ela beba chá com ditadores, agravando acidentalmente uma situação geopolítica tensa por causa de um tweet imprudente. Mais importante ainda, se ela não fizer a transição para a Sala Oval, não temo que esta seja uma decisão que ela venha a contestar.
Donald Trump está na ribalta política há mais de oito anos, uma realidade sombria e inacreditável. Pessoalmente, estou farta. E não vou relatar todas as feridas que ele abriu na América, porque aqueles que não as veem — depois de tanto tempo — não as querem ver. Mas vou rapidamente referir algumas das coisas que ele disse nas semanas que antecedem o dia 5 de novembro, porque, por muito que não seja produtivo prestar atenção a uma criança chorona ou a um rufia mesquinho, um dos maiores fracassos dos media em 2016 foi acreditar que a longa lista de declarações ridículas de Trump eram meras chamadas de atenção e não uma agenda cuidadosamente elaborada.
Trump prometeu levar a cabo o maior plano de deportação da história americana no primeiro dia da sua “futura presidência.” Falou em utilizar a Guarda Nacional contra compatriotas e opositores políticos. Elogiou a lealdade dos oficiais de Hitler e prometeu enviar muitas, muitas mais armas e munições para Israel. Tudo isto na semana passada.
Como já disse anteriormente, o arco moral do universo é longo. Mas deixei convenientemente de fora a última parte dessa citação. “O arco moral do universo é longo, mas inclina-se para a Justiça”, disse o Dr. King. Neste contexto, um arco que se inclina para a Justiça é aquele que dá aos americanos o poder de examinar de perto propostas políticas transparentes e votar naquelas que melhorarão as suas vidas e as vidas dos seus entes queridos em eleições futuras. Poderia afirmar que o dia 5 de novembro irá determinar a veracidade desta afirmação, mas acredito nela, independentemente dos resultados destas eleições americanas. O arco curvar-se-á em direção à Justiça. Mas com Donald Trump no poder, o caminho será muito mais longo e muito mais árduo. A questão que se coloca é se a América é suficientemente forte para aguentar a espera.