É o Evangelho mais longo do ano, o de Domingo de Ramos, que narra a Paixão. É sempre lido em diálogo e fala de nós e connosco.

É um texto de grande dramaticidade por onde desfilam os nossos pecados e debilidades e até a debilidade de Cristo, enquanto homem. Nesse sentido, o itinerário da Paixão do Senhor, a Sua entrega até à morte que abre portas à Ressurreição, sendo o mais misterioso e decisivo dos mistérios da Fé, é um compêndio intemporal da Humanidade, um catálogo da natureza humana. Judas, Pedro, os sacerdotes, Pilatos, a multidão, os dois ladrões, o Centurião, José de Arimateia são de ontem, de hoje e de sempre.

A traição de Judas é a traição paga com dinheiro – trinta moedas de prata. O papel de Judas é ingrato: tinha de haver um traidor para que se cumprissem as Escrituras. Lembro-me de ser adolescente e de, com o meu sentido humanista e revolucionário de então, achar que Judas era vítima de um guião pré-definido que fazia dele o inevitável mau da fita, o cúmplice daquela oligarquia oficial e oficiosa de sacerdotes, anciãos, fariseus e escribas, uma colecção de intriguistas acomodados e reaccionários, a classe política do Velho Testamento, a cerrar fileiras contra a Boa Nova.

A traição de Judas pode também ver-se como a traição de um radical que queria um Jesus político, justiceiro e identitário, que levantasse os judeus contra o colonialismo romano e os colaboracionistas judeus. Traindo o Messias, forçava-O a recorrer ao Seu poder divino para libertar o povo e impor neste mundo o Reino de Deus. A traição de Judas, a tentação de politizar, de usar politicamente e de manipular a Boa Nova para fins temporais é também uma tentação de sempre.

A Páscoa judaica celebrava a libertação dos filhos de Israel da tirania do Faraó do Egipto. Cristo trazia outro tipo de libertação. A noite da última ceia era o princípio do dia judaico, e o sacrifício dos cordeiros – memória da passagem do Egipto – vai coincidir com o sacrifício do Cordeiro de Deus, a Páscoa cristã.

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É na ceia que Jesus diz que entre os doze que ali estão com ele está um que O vai trair. E Judas, enredado já nas teias da traição, pergunta, cinicamente se é ele; ao que Cristo lhe responde “Tu o disseste”. É o modo de o Mestre responder a perguntas insidiosas. Fará o mesmo com Pilatos.

Cristo institui então a Eucaristia – nas formas do Pão e do Vinho, do Corpo e do Sangue – outro mistério e outro milagre que é, para os católicos, a transubstanciação.

A noite das Oliveiras

Depois da Ceia, no Horto, no Jardim das Oliveiras, Cristo começa por prevenir os discípulos de que, também eles, O vão renegar e abandonar. Pedro responde que, mesmo que tenha de morrer, nunca o negará, mas Cristo assegura-lhe que sim, que Pedro O vai negar três vezes antes que o galo cante. Depois aparta-se, pedindo ao Pai que afaste Dele o cálice. A sós, no Jardim de Getsémani, sofre e chora. Diz-nos S. João que Cristo, quando chorara a morte de Lázaro, chorara um choro silencioso (edakrusen é o verbo grego usado); mas em Getsémani chora mesmo e, segundo Lucas, num estado de profunda angústia, sua sangue, implorando ao Pai que o livre do que o espera – das humilhações, do martírio, da morte – antes de se submeter à Sua vontade.

Depois vem Judas, com a multidão dos captores, os agentes da ordem e a turba, mandados por Caifás e pelos anciãos com espadas e varapaus; é o tempo de Judas Iscariotes consumar a traição, beijando o Mestre. Um dos que está com Cristo puxa da espada e corta a orelha a um lacaio de Caifás; mas Cristo repreende-o, dizendo-lhe que se quisesse recorrer a esses meios, contaria com legiões de Anjos: as regras do jogo e o guião do Reino de Deus eram outros.

Então, como Ele previra, todos o abandonam. Só Pedro O vai seguindo, como anónimo; mas quando confrontado, acaba mesmo por O negar três vezes, antes do cantar do galo.

Segue-se o interrogatório de Caifás, que acusa Cristo de blasfemo e o remete para Pilatos, o representante da autoridade de ocupação de Roma, o único que O pode flagelar, condenar e executar. Mas Pilatos, diz-lhe o Réu, só tem o poder que lhe é dado, e é menos condenável do que os que a ele O entregam. Quando Jesus lhe responde, “Tu o disseste: sou rei! Vim ao mundo para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.”, Pilatos faz-lhe a célebre pergunta, tão definidora dos tempos que vivemos: “O que é a verdade?”

A seguir a multidão, perante a possibilidade que lhe é dada por Pilatos de libertar Cristo, o Rei dos Judeus, ou Barrabás, um criminoso de delito comum, escolhe Barrabás, instigada pelos agentes de Caifás. Pilatos lava daí as suas mãos e entrega Cristo aos captores. Era lá com eles e lá entre eles.

Pouco depois da aclamação na entrada triunfal em Jerusalém vem o calvário do linchamento popular: a tortura, a humilhação da coroa de espinhos e do manto falso. Cospem-lhe, esbofeteiam-no, forçam-no a carregar a cruz para o Gólgota. No caminho, encontra o Cireneu, que O ajuda a levar a cruz.

Entre ladrões

Crucificam-no no meio de dois ladrões. É nestas três cruzes que Santo Agostinho vai ver concentrado o drama humano, pessoal e colectivo, perante a Verdade e a Salvação: “Estão três homens pregados na cruz: um que dá a salvação, um que a recebe, e um que a perde. No centro o Justo, a um lado o pecador arrependido e a outro lado o que se fechou no seu pecado”.

Entretanto, outros, continuam a desafiar e a provocar o Crucificado – se é Deus, porque não desce da cruz? É A última tentação de Cristo, a tentação da facilidade, de fugir à missão maior, que Martin Scorsese tentará imaginar em filme.

Cristo expira finalmente. Rasga-se o véu do templo e a terra treme. E é um Centurião, um estranho ao “povo de Deus”, quem confirma a identidade do Salvador: “Em verdade, Aquele era o Filho de Deus”.

No fim, aparecem as santas mulheres e o também misterioso José de Arimateia, um homem rico, um discípulo clandestino de Jesus, que vai pedir a Pilatos para levar o corpo de Cristo. E são outra vez os sacerdotes e os fariseus que pedem a Pilatos que ponha guardas no sepulcro, com o governador a dizer-lhes que tratem eles disso. E eles, além da grande pedra que tapa o túmulo, põem-lhe selos e guardas.

Dante vai definir a traição como algo que pressupõe laços pré-existentes – laços de sangue, como Caim, que mata o irmão, Abel, por inveja. Judas também tem a confiança de Cristo; é um intelectual (tesoureiro, homem de contas) entre homens simples, pescadores. Dante condena Judas ao Nono e último Círculo do Inferno, uma região a que chama Judeca, de Judas, mas talvez também de Judeu, supondo que o poeta possa ter sido movido por algum preconceito anti-semita. Os traidores abundam em Shakespeare – Macbeth, Iago, o próprio Ricardo III. Judas é o traidor por excelência, mas, na noite da Paixão, todos vão, por medo, trair e abandonar o Mestre, quando vem a multidão.

É o reconhecimento da fraqueza da natureza humana, da fraqueza da nossa condição – mesmo dos que virão a ser santos – e a certeza de que pode ser redimida. Pedro, a pedra sobre qual Cristo quis fundar a Sua Igreja, depois de, assustado, renegar o Filho de Deus, vai morrer por Ele e com Ele em Roma.

Os interlocutores de Judas são também intemporais e espelham realidades que, muitas vezes, nos tocam de perto, pessoal e colectivamente: são os poderosos do tempo e do templo; uma elite de serviço colaboracionista com os romanos, como hoje as classes políticas dos países de periferia em relação aos centros dominantes. O traidor Judas negoceia com estes senhores do Templo a venda de Cristo, que está fora do controlo deles e os perturba. As oligarquias, sejam do sangue, do dinheiro, do partido, da cultura – e não só as oligarquias – continuam a ser assim: não gostam de recém-chegados que não conhecem nem controlam. E sacrificam-nos ao ocupante.

O ocupante é o romano, representado por Pilatos, um burocrata que sentimos como especialmente próximo de nós, no lavar de mãos e na manipulação de palavras e conceitos. Pilatos e o julgamento de Jesus de Nazaré é o livro que, no livro de Bulgákov O Mestre e Margarida, o Mestre tinha escrito e acabado por ter de queimar. Pilatos, o burocrata, não se quer comprometer, por isso dá as respostas que os políticos do sistema (seja ele qual for) quase sempre dão – lavam as mãos, falam em problemas estruturais e devolvem a decisão ao povo – ou “aos tribunais”, ou “à comunidade científica”, ou “à opinião pública”, não querendo ficar com o peso do sangue do justo – ou sequer do “injusto”.

E aqui entra o povo, a multidão, que tinha aclamado o Nazareno, mas que já trabalhada pelos sacerdotes, os anciãos e a sua gente, escolhe Barrabás. Uma realidade de manipuladores e manipulados que também conhecemos bem. É a gente agitada e empurrada pela comunidade mediática ou por quem quer que a agite e manipule, dizendo-lhe o que é correcto escolher, quem são os bons e quem são os maus, quais os culpados à partida e quais os inocentes de sempre, uma multidão que quando decide a favor dos instigadores é “sábia” e que quando os rejeita “está a ser manobrada”.

É por esta nossa humanidade de traidores, de cobardes, de ladrões, de renegadores, de manipuladores, de multidões acéfalas e de elites perversas, que se entrega um homem bom, uma espécie de convidado surpresa nesta tragicomédia feita do “misto de trevas e brilho” que somos. É por ela que ressuscita. Nestes tempos de Páscoa, meditando a Sua paixão, olhando cada um dos que nela intervêm e confrontados com a nossa verdade, temos, como todos os anos e como todos os dias, a mesma escolha que os ladrões crucificados ao lado do Justo: abrirmo-nos à Salvação ou fecharmo-nos no pecado.

Santa Páscoa.