O sistema do comércio internacional está em ebulição. Donald Trump abriu as hostilidades, ao anunciar os primeiros aumentos tarifários no início do ano. Em resposta, foram adotadas medidas por vários outros países e blocos, em particular a União Europeia, a China, o Canadá e o México. Tarifas sobre bens no valor de quase 100 mil milhões de dólares encontram-se já em aplicação pelas várias partes, e o executivo norte-americano encontra-se a ponderar a aplicação de direitos tarifários sobre mais 200 mil milhões de dólares de importações chinesas, os quais provavelmente terão como consequência uma retaliação em medida equivalente.

Perante esta escalada de medidas unilaterais, importa perceber o que está na origem da mesma.

A título preliminar, importa recordar que o sistema de regras multilaterais estabelecido pelo acordo antecessor da OMC (o GATT) foi imensamente benéfico para os países aderentes, o que conduziu a uma redução muito significativa das tarifas médias aplicáveis, as quais se situavam em mais de 20% nos anos 40 do século passado e se cifram em menos de 5% atualmente.

No essencial, os países aderentes comprometem-se a aplicar tarifas aduaneiras com base no denominado princípio da nação mais favorecida, ou seja, em termos não-discriminatórios. Esta regra comporta exceções, sendo os Estados aderentes livres de aplicar tarifas suplementares para proteção das indústrias e empregos nacionais em situações de aumento muito significativo de importações, de subsidiação de produtos por países terceiros ou de dumping. Foi com base nesta possibilidade de aplicar medidas excecionais de salvaguarda que Donald Trump, com o argumento que os termos atuais das importações de aço e alumínio colocam em causa a segurança nacional, abriu as hostilidades há alguns meses.

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Os Estados Unidos parecem ter essencialmente duas razões de desconforto com as regras atuais.

Em primeiro lugar, entendem que o órgão de apelo da OMC tem vindo a interpretar e aplicar as regras acordadas de forma inapropriada, o que impede o país de reagir a alegadas violações das mesmas por parte de outros países aderentes. Em particular, a interpretação da noção de organismo público tem sido alvo de significativa controvérsia. Os Estados Unidos entendem que a leitura estrita que o órgão de apelo faz do conceito tem beneficiado a China, país no qual, alegam, nem sempre é fácil traçar a fronteira entre os setores público e privado.

Em segundo lugar, consideram que as regras atuais são impotentes perante determinado tipo de restrições não tarifárias, em particular a obrigação alegadamente aplicável em vários setores económicos na China de as empresas estrangeiras operarem em parceria com empresas locais. No entendimento norte-americano, esse tipo de parceria obrigatória mais não é do que uma transferência forçada de propriedade intelectual e segredos comerciais por parte das suas empresas.

A necessidade de alcançar unanimidade entre mais de centena e meia de membros para alterar as regras do jogo tem sido um obstáculo à reforma do sistema da OMC. Durante a administração Obama, os Estados Unidos procuraram isolar a China e forçá-la a sentar-se à mesa através da negociação da Parceria Transpacífica com várias economias asiáticas e da Parceria Transantlântica com a União Europeia (UE). Donald Trump acabou por abandonar esta estratégia em favor da política atual.

Por seu turno, a UE tem sentido dificuldade em posicionar-se perante o problema. Se por um lado partilha de algumas das preocupações dos Estados Unidos, razão pela qual tem rechaçado as abordagens chinesas no sentido de constituir uma frente comum contra os norte-americanos na matéria, por outro vê com apreensão a recente escalada de medidas comerciais unilaterais.

E não sem razão, uma vez que algumas das posições adotadas por Donald Trump levantam legítimas dúvidas sobre se a estratégia norte-americana é realmente apenas e só forçar uma reforma das regras da OMC.

Com efeito, diversas declarações do Presidente norte-americano parecem ter subjacente a ideia errada de que o comércio internacional é um jogo de soma nula, no qual o ganho de um país é a perda de outro. Na realidade, a existência de um défice comercial não é necessariamente um sintoma de uma economia débil, pois pode, pelo contrário, ser reflexo de uma economia pujante com forte procura e necessidade de importações para satisfazer a mesma.

Nesse sentido, o objetivo de reduzir o défice para com determinado país não tem verdadeira razão de ser, uma vez que, e se continuar um país a gastar mais do que o valor do que produz, o défice aparecerá inevitavelmente nas contas com um terceiro país.

Por outro lado, os sucessivos aumentos tarifários aos quais temos assistido são especialmente perniciosos nesta fase do ciclo económico mundial. A pressão em alta nos preços a que tais aumentos inevitavelmente conduzirão pode levar a que a Reserva Federal embarque num processo de aumento ainda mais rápido das taxas de juro, com a continuada apreciação do dólar, e uma dificuldade acrescida dos países emergentes com o serviço da respetiva dívida. E isto num contexto em que esses países constituem uma fatia muito superior da economia mundial e, em particular, do crescimento da mesma, por comparação, por exemplo, com a situação vigente aquando da crise asiática dos anos 90.

Após um longo ciclo de expansão, uma recessão global no próximo par de anos é praticamente inevitável. Mas importaria que não fosse acelerada ou agravada por uma guerra comercial que Donald Trump acha que não pode perder, mas que dificilmente terá vencedores. Têm a palavra os negociadores das várias partes envolvidas.

Ricardo Oliveira é advogado e sócio da PLMJ