Por estes dias o parlamento discute e vota, na generalidade, um conjunto de diplomas sobre matérias que, por interesse do debate, se encaixam numa só palavra – eutanásia.

O Partido Socialista apresenta a sua iniciativa, mas não limita a opção dos seus deputados. Mesmo assim, porque o mundo mudou muito, o meu voto talvez seja mesmo único, autorizadamente diferente.

Não será novidade. Em 2003 já havia acontecido com a Interrupção Voluntária da Gravidez, uma indagação dissonante na matéria de facto e na proposta de realização de um referendo.

Não pondero, nunca ponderei, nas minhas leituras sobre os deveres constitucionais dos deputados, que neles caiba a autorização de transporte, para as consultas populares, de assuntos desta natureza. A minha democracia é representativa, deve suster-se nos eleitos para a permissão das inovações legais. A convocação de referendos nestas matérias é, em si mesmo, uma fragilização da legitimidade dos sistemas políticos, um convite encapotado às correntes populistas cujas experiências anteriores patentearam, sem visíveis ganhos no esclarecimento dos cidadãos, a retração do debate informado.

Estas posições ajudaram a consolidar, aqui ou ali, uma ideia – a de que eu teria uma visão religiosa dos temas que referi. Nada de mais tonto e desconexo. Por essa razão arroguei a necessidade de aqui deixar as linhas que desagrego perante as grandes questões éticas que se colocam hoje às nossas sociedades, as ponderações que poderemos (ou deveremos) ter em tempos de ausência de eupatia para a argumentação e de excesso de atrupido e de altanaria perante a divergência.

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Divido as grandes questões de sociedade que hoje enfrentamos em dois grupos. O primeiro, o que nos leva ao objetivo da felicidade. Este grupo, pela sua natureza, esbate qualquer leitura religiosa da minha existência enquanto pessoa e enquanto político.

Assumo o princípio da felicidade na permissão da união integral e absoluta entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se de não projetar contra outrem uma obrigação pela ordem social instituída durante séculos, trata-se de compelir o ser humano, na sua diversidade, a encalçar o caminho da vida sem preconceito de qualquer espécie.

Assumo o princípio da felicidade na autorização, na militância, pela adoção de crianças por qualquer ser humano, reveja-se ela em qualquer das nossas antigas ou recentes realidades familiares, desde que livre e concedente de amor, desde que disponível para consagrar vidaa uma outra vida.

Assumo o princípio da felicidade no encontro de um caminho para que cada um se encontre consigo próprio. É esse o primórdio que está subjacente aos projetos que apoiei de determinação complectiva de género, em liberdade.

Por esta lista de opções podem os mais lestos olhar-me sem critério nos mais progressistas dos deputados portugueses. Progressista não é adjetivo que rejeite, porque assim me considero, porque por ele milito em permanência.  Aliás, é por esse lado que se inicia também o primeiro dos grandes argumentos pela vida, na minha observação de vida e felicidade como análogos societais.

Vem, no segundo grupo de preocupações societais, a minha opção positiva pelas técnicas inovadoras de criar vida, sejam elas quais forem, usem que métodos, sistemas ou orquestrações jurídicas e técnicas usarem. E desde que eticamente sustentadas, recebem, da minha parte, a manifestação empenhada na evolução que devemos trilhar. É exatamente por isso que lamento a posição do Tribunal Constitucional sobre a gestação de substituição, esquecendo a alegria de muitos casais que esperavam alcançar a sua plenitude. Vida, trata-se de defender a vida, de a promover, de fazer mundo, de encontrar na ciência o que a circunstância específica de duas pessoas não permitiu biologicamente.

A vida, essa coisa mágica, essa realidade filosófica que nunca terá uma resposta, razão, ou equação, foi o sinal que me levou a não sancionar a atual lei da Interrupção Voluntária da Gravidez e à consideração envergonhada de alguns, sobre este eu parlamentar, por um certo ultramontanismo. O limite para mim sempre foi o dos três registos que a minha leitura científica e filosófica também estabeleceu – violação, risco para a saúde da mãe, malformação do feto. Não importa regressar agora a este combate. Ele está hoje tão penetrado na nossa circunstância relativizada que já nem a mais conservadora Irlanda se mantém pertinaz.

Entramos nestes tempos na questão da morte assistida, ou na eutanásia, por economia de conceitos. Já acima referi a minha discordância e a minha circunstância de deputado socialista minoritário. Importa agora indicar as razões que já desenvolvi em circunstâncias diversas mas que as mais recentes opiniões publicadas me compelem a recolocar.

Tenho para mim que é dever dos poderes públicos a preservação davida, não a conjugação das autorizações para a sua eliminação. A ciência, como atrás referi, dá-nos, a cada dia, surpreendentes notícias, concede-nos um campo de novas oportunidades que deveremos assumir. Para mim, o Parlamento não pode conceder que esta seja uma matéria de reserva de cada um, e o sinal de que se pode “matar” não é um avanço, mas sim um retrocesso civilizacional.

Tenho para mim que a dignidade não se ganha com a conceção de um poder desesperado perante o sofrimento, mas ganha-se olhando para esse sofrimento físico e psíquico e concedendo-lhe todos os meios para o eliminar.

Tenho para mim que incumbe a todos nós um olhar sobre a responsabilidade para que a vida, toda avida, seja digna. Ora, a reivindicação de uma morte digna é exatamente o contrário do que devemos evocar enquanto magma de valores, enquanto repositório de conquistas sobre o infortúnio.

Tenho para mim que o Estado deve apostar na vida o mais longa possível, na sua qualidade e valia, na determinação de políticas onde cada um, seja qual for a sua juventude, assuma um papel, se consagre num tempo de equilíbrio entre gerações. A autorização da morte antecipada, por razões físicas, mas também por razões psíquicas, é o encurtar do nosso modelo de prossecução da felicidade, é a resposta antecipada para uma nova época de trevas constituída por indivíduos afastados do gregário. O desistir da vidacomeça num dia e em determinadas circunstâncias, mas nunca mais para, ampliando-se, em tempos ulteriores, as razões para dela nos desprendermos.

Tenho para mim que enquanto comunidade deveremos olhar as fraquezas do regime legal do testamento vital, a sua difusão e a promoção da adesão indispensável, como também tenho o dever de exigir que se consagre, no SNS, a rede adequada de cuidados paliativos. Desistir da vida é desistir da ocupação colectiva de avançarmos na construção de uma comunidade vanguardista e em prol da Humanidade, é deixar cada vez mais longe esse nirvana em que se nega a coisificação desta existência única.

Há, no meu partido, o Partido Socialista, a reivindicação permanente do Humanismo, da sua relevância para o nosso ser coletivo. É nesse mesmo Humanismo que eu penso militar. Não o proclamo a cada esquina, mas vivo-o. Não o dispenso só para ato distante dos amanhãs, mas ele permanece a cada elo do caminho. É exatamente por isso que não posso estar lá, não posso concordar com o trilho que me sugerem. É exatamente por isso que votarei contra.

Deputado do PS, Maio de 2018