Num artigo lá para o início da pandemia, eu já sublinhava o estado cronicamente lastimável do SNS como um dos, previsivelmente, maiores factores da subsequente abordagem catastrófica da mesma (e foi, literalmente, em regime de catástrofe, emergência e outros epítetos que tal que se viveram esses dois anos). Não se tratou pois de confrontar uma situação de insuficiência aguda e pontual (o vírus e suas consequências) mais o stress dela resultante sobre as estruturas, mas sim de viver com as consequências da gota de água que fez transbordar o copo de uma situação crónica e bem conhecida, já próxima do moribundo, e que os nossos governantes não ousaram admitir por receio da impopularidade que essa revelação traria, sendo bem sucedidos nessa ocultação graças à cumplicidade de meios de comunicação social perigosamente truncados de independência financeira e editorial, e até, estranhamente, de alguns colegas meus que singraram um pouco por todo o lado nos tempos pandémicos, nessa espécie de «Big Brother-médicos», colaboracionistas úteis no branqueamento das responsabilidades passadas das nossas inimputáveis «entidades» (entre muitas outras «matreirices» de permeio desses «poetas do medo e da submissão», como a culpabilização dos doentes pelo caos, o permanente apelo à infantilização de cidadãos adultos, pretensiosamente decretados como sendo subitamente demasiado estúpidos e irresponsáveis para serem deixados em liberdade, entre muitos outros soundbites do género que lhes trouxeram a fugaz fama, e que não vou aqui esmiuçar mais para não me desviar do tema…).
Os problemas não eram pois novos. Apenas mais visíveis ou, daquela feita, impossíveis de ignorar.
Em Portugal forma-se um médico em 6+1 anos, que depois se especializa em 4-6 anos suplementares. O numerus clausus, fixado pelo Ministério da Educação/Ensino Superior (ou seja: sem qualquer relação com médicos e sua pretensa «influência», ao contrário do difundido por narrativas variadas), foi enormemente relaxado nos últimos anos (e quase triplicou relativamente há um par de décadas). Em suma, há menos candidatos ao Ensino Superior, e muito mais vagas disponíveis.
Estamos num mundo globalizado e a Medicina é um curso de apreensão difícil, laboriosa e demorada. Enquanto que na maioria dos outros cursos se passeia para passar e trabalha-se para brilhar, em Medicina trabalha-se muito apenas para passar, mesmo partindo-se de uma base de estudantes já seleccionados entre os mais brilhantes segundo os critérios do ensino secundário, em concursos justos. A «resiliência» não é pois «virtude» na classe, faz parte do pacote de série desde a selecção inicial. Quando um candidato ao ensino superior pondera as suas opções, esses factores pesarão negativamente relativamente ao ingresso no curso (vulgo «carga de trabalho»). Positivamente, para além do prazer antecipado no exercício da profissão (vulgo: «vocação»), estará a estabilidade de emprego e o nível de vida resultante, num contexto global em que o valor desse trabalho é elevado (e cobiçado).
Ora acontece que, em Portugal, por razões ideológicas e de estagnação/pobreza económica de longa duração, optou-se há várias décadas nesse modelo socialista de gestão da Saúde por atacar a jusante os privilégios dessa «elite médica», outrora uma profissão essencialmente liberal, mas entretanto totalmente dependente dos caprichos do Estado (na forma de um SNS exclusivamente público), pois agregando um elevado número de profissionais (cerca de 70.000 inscritos na Ordem dos Médicos na actualidade, não sendo todos – e se calhar nem a maioria – médicos do SNS na actualidade), representam naturalmente uma certa «despesa» pública (particularmente quando não se quer fazer, institucionalmente, a pedagogia do «investimento» em Saúde, como os ingleses e o seu NHS). E como mediaticamente (e eleitoralmente) continua a parecer rentável o estímulo da inveja social contra grupos de privilegiados, independentemente das razões que levam ao dito «privilégio» (e que, nesse caso, se resumem ao mérito escolar) ou às consequências da sua eventual perda, não houve alternância de governo que alternasse nunca essa política de Saúde, desde os idos anos 90.
E, sempre por razões ideológicas, procurou-se resolver parte do problema da despesa em Saúde com o corte salarial dos elementos mais diferenciados do sector, sendo inclusive os médicos um dos raros grupos profissionais dependentes do Estado que, em Portugal e desde 2012, PERDERAM (em média) salário líquido (já para nem falar de «poder de compra»).
Procura-se, por último, seguir uma estratégia a montante de saturar o mercado com excesso de profissionais (com alargamento do tal numerus clausus), por forma a ficar-se menos refém das expectáveis insatisfações da classe, assim enfraquecida.
Isso até poderia resultar, não fossem alguns detalhes: em primeiro lugar, a Medicina ensinada em Portugal, até ver, é de excelência e segundo os melhores critérios de práticas internacionais, o que faz com que num mundo global também ele com carência destes profissionais, os médicos tenham valor de mercado e consigam, à distância da aprendizagem de uma língua e do percurso de uns quantos quilómetros, ser muito melhor remunerados que no país natal, muito melhor tratados pelos empregadores (com formas modernas de gestão), muito melhor servidos no dia-a-dia (em condições de trabalho, e em meios), com mais descanso e férias, e ainda por cima em países prósperos que muitas vezes oferecem mais garantias para o seu futuro e o dos seus filhos.
Para os menos aventureiros, existe a opção do sector privado, tanto mais florescente quanto mais decadente se torna, invariavelmente, o público.
Quanto à estratégia de «saturação do mercado com muitos médicos», ela está condenada ao insucesso, desde logo porque pretende-se metaforicamente encher um balde furado em que, por um lado, saem cada vez mais os melhores elementos pelo buraco, levando a uma diminuição da capacidade e da qualidade da formação dos que são, por outro lado, entretanto despejados para dentro dele em compensação. E isso, silenciosamente, tem inevitáveis consequências a prazo: menor qualidade global da Medicina que se ensina e pratica, menor atractividade dos melhores para o curso e para a profissão na mesma medida da tomada de consciência de que serão condenados a uma vida de sacerdócio mal remunerado e mal agradecido.
E tudo isso para, finalmente, o balde ficar na melhor das hipóteses tão cheio quanto estava, só que com um conteúdo ainda pior.
Por outras palavras: poderia de facto resultar, mas em Cuba (ou regime aparentado).
Na nossa realidade, e que é a de uma Democracia (mais ou menos) Liberal, ou seja, se nos alhearmos dessa dissociação cognitiva entre «o que existe» e «o que alguns imaginam que devia existir», a coisa resolve-se mesmo é com dinheiro. Muito dinheiro. E não se resolve depressa, mas sim a médio-longo prazo, e só se aquele for usado com critério e rigor.
O que, num país sem dinheiro, implica desde logo reencontrar de uma vez por todas os caminhos da prosperidade. Se «o Socialismo termina quando se acaba o dinheiro dos outros», e tendo este último acabado faz tempo, pese a maior ou menor esmola dos frugais, a penalização política tarda e vai pagar-se caro, adiada apenas graças a uma excelente propaganda conjugada com um enorme défice de percepção, atenção ou juízo do povo em geral. Pois os cerca de 10% do PIB dedicados à Saúde (mais ou menos a média para o sector dos países da OCDE) significam, objectivamente para Portugal, uma pequeníssima parcela do dinheiro de que dispõem os países com os quais delirantemente nos gostamos de comparar, muitas vezes com o dobro ou o triplo do nosso PIB per capita. E assim, não há mesmo SNS que resista tal como o imaginávamos.
Depois, uma vez que se tiver esse dinheiro, e assumindo que se continua a pretender uma mutualização de todos para uma REAL universalidade de (bons) cuidados de Saúde, terão desde logo que ser aumentados os salários dos médicos. Começo de chofre com o óbvio: um especialista médico, após ter completado toda a sua formação (homem ou mulher com um mínimo de 30 anos de idade), ganha actualmente o salário bruto de 2.700€. Quer se goste quer não, quer seja popular dizê-lo quer não, se não quiserem continuar a assistir à saída maciça de médicos do SNS, um valor de salário-base que não seja próximo do dobro desse valor não irá resolver o problema. Já que, ali nos países ao lado, é bem mais do dobro disso (e muitas vezes o triplo, ou o quádruplo…) que se paga. E só tapando o buraco do tal balde metafórico se poderá seguir para resolver os males estruturais que padecem no seu conteúdo, sendo a base essencial de qualquer tentativa realística de recuperação, numa Economia de Mercado com circulação livre de cidadãos. Ou então tapando as fronteiras e queimando as jangadas.
Terão seguidamente que acontecer as tais «reformas estruturais»: contabilização séria e formação dos profissionais necessários nas várias especialidades para o país; incentivos para as regiões mais carenciadas; criação de um verdadeiro serviço de Urgência, com um corpo de profissionais especialistas dedicados; enorme aumento do ratio enfermeiro:médico para próximo dos valores que se vêem lá fora; aumento concomitante das competências (na prática!) de enfermagem, retirando aos médicos as várias tarefas escusadas que, em Portugal, ainda lhes consomem tanto tempo, desviando-lhes o foco daquilo para que são realmente necessários; desburocratizar o acto médico; flexibilizar o seu trabalho, mais centrado no bom funcionamento dos serviços do que, por exemplo, no patético cumprimento transversal de um horário de escritório (como parece ser notícia nestes tempos…); permitir a óbvia progressão profissional (e salarial) pelo mérito (quer lhe chamemos «carreira» ou outra coisa qualquer); avaliar o cumprimento de objectivos; articulação entre instituições; estimulação da concorrência; flexibilização das leis laborais; facultar um número de camas suficientes; incrementar os cuidados continuados; estimular uma rede de cuidados domiciliários, e uma rede de cuidados de saúde primários efectivamente (omni-)presente para as populações, fazendo-as divergir dos Hospitais e facultando uma Medicina preventiva de qualidade; investimento em equipamentos para complemento diagnóstico e para tratamento, etc….
Tudo condições igualmente necessárias (numa lista longe de ser exaustiva) para a reanimação deste cadáver em que se tornou o SNS (e repito, para não polemizar ainda mais: seja ele público, privado ou misto, e seja ele baseado num Estado-prestador ou num Estado-pagador).
E para os que acham que a questão do dinheiro é difícil, e a da reforma estrutural também, então que dizer quando esbarramos na questão da «gestão» desta reforma? E que implicaria a concessão/abandono, por parte do «poder central», dos tradicionais tachos com critérios de ocupação muito pouco meritocráticos (e sobretudo partidocráticos)? Muitos, muitos tachos, aos mais diferentes níveis (direcções de serviços, de hospitais, de centros de saúde, de ARS’s, ministério, entre muitos outros…), destinados àqueles que cada vez mais são os únicos a realmente serem (bem) servidos pelos serviços públicos. A gestão deveria ser descentralizada (com excepção eventual de unidades de coordenação e fiscalização), assumida por pessoas de reconhecido valor, submetida ao escrutínio público e à avaliação, transparente e flexível, da qual fariam parte médicos e outros profissionais do sector, e sem influência política nas nomeações.
O que, bem sei, em tempos em que até as Ordens profissionais são vítimas do assalto controlador do Estado, já coloca esta minha prosa no raiar da ficção.
Por isso não, caros concidadãos, o problema não se vai resolver, nem vai «ficar tudo bem», nem foi culpa da pandemia ou do Trump, como também não é culpa da guerra, do Putin, da inflação, do preço do petróleo ou do trigo.
Os bondosos colectivistas sociais da nossa praça, mais as suas excelentes intenções, conseguiram a proeza, ao longo de muitos anos, de colocar a facção da população portuguesa mais desfavorecida (e, ironicamente, a sua base eleitoral) em posição de ser candidata a cuidados de Saúde de segunda durante muito tempo, concretamente toda aquela que não consegue pagar seguros com o remanescente dos seus magros rendimentos. E a inglória culpa que sempre emana da patética e já enjoativa (mas bem funcional) propaganda será pois, já sabemos, «dos outros», por sinal todos aqueles que nunca mandaram nem decidiram nada por cá no burgo nos últimos 50 anos: os capitalistas, os liberais, os ricos ou menos pobres, os alemães ou os americanos, a NATO e o consumismo, o patriarcado branco heterossexual e a malta que não recicla o lixo, enfim, todos os que a fértil imaginação quiser ou calharem na conveniência da narrativa do momento.
Mas nunca será deles, dos que mandam e decidem, a culpa.
Cuidados de segunda para doentes de segunda e mortos de segunda, eis pois o legado desta gente que tem sempre o credo do altruísmo sacrificial na ponta da língua: sacrifício dos outros, para gáudio do altruísmo das suas más consciências (e dos seus crentes).
Diz que há um ditado turco que reza: «se trazes o palhaço para o castelo, não é o palhaço que se torna rei, mas sim o castelo que se torna circo».
Pois que este modesto contributo, que bem sei não adianta solução alguma, vos consiga pelo menos mostrar a realidade do elefante presente dentro do SNS e que ninguém quer ver.
E sobre os palhaços que transformaram o país neste circo.