Indo sem mais delongas ao assunto, o conhecido advogado explicou ao director do mais importante jornal do país que o objectivo era mostrar, de forma tão detalhada quanto possível, o que era a escravatura dos africanos.
O outro pousou cuidadosamente a chávena de chá, assentiu com a cabeça e respondeu:
— Sim, estamos a fazer isso e a apoiar quem o faz no estrangeiro. Há muita gente a pronunciar-se pela causa, sabe? A escrever livros, a falar em público, a agitar as águas. Ainda hoje me chegou um texto que faz o leitor sentir a aflição e mágoa do escravo a bordo do navio negreiro, e vamos publicá-lo no jornal. Esse e um outro que fala da exploração desses braços negros no Brasil. E dentro de dias um que condena a avidez e desumanidade do homem branco.
— Excelente! — congratulou-se o advogado — Mas não esqueça que simultaneamente precisamos de dar uma visão positiva das inofensivas aldeias de África. E, sobretudo, nunca perder de vista os três objectivos centrais da nossa luta.
E, erguendo a mão direita, indicou-os um a um com os dedos, começando pelo polegar:
— É preciso que as pessoas tomem consciência do crime; depois, que sintam remorso; e, por fim, vontade de reparação. Esses três degraus da nossa escada são imprescindíveis, meu caro Jeremy.
Chegados aqui os leitores pensarão, certamente, que eu estou a reproduzir uma conversa recente entre dois activistas woke, algures nos Estados Unidos. Nada disso. Estou a falar da campanha abolicionista britânica de finais do século XVIII e inícios do século XIX. O advogado a que me refiro existiu mesmo. Chamava-se James Stephen, era cunhado de Wilberforce e foi um importante abolicionista inglês dessa época. A conversa que narrei acima é ficcional, mas podia ter existido pois incorpora os principais pontos do que era, então, a estratégia abolicionista.
Efectivamente, nessa época os britânicos viviam uma campanha massiva politicamente orientada para a abolição do tráfico transatlântico de escravos, o que viriam a conseguir em 1807. Vinte ou trinta anos depois viveriam outra igualmente intensa para a abolição da escravidão, efectivamente proibida em 1833. Essas campanhas abolicionistas foram as primeiras grandes vitórias da propaganda junto das massas e assentaram, em grande parte, na exposição do mal e num apelo aos sentimentos das pessoas. Os abolicionistas apostavam fortemente na indução da culpabilidade e da vergonha (de quem persistisse no crime) e foi muito essa a tónica de um esforço que ocupou longamente os trabalhos do Parlamento e que passou pela publicação de livros, folhetos, jornais, por sermões e textos religiosos, pela organização de reuniões e conferências, pelo fabrico de louça, roupas, gravuras, medalhões, pinturas alusivas à escravatura. Esse movimento foi avassalador no mundo britânico e transbordou para os outros países ocidentais, incluindo Portugal.
Curiosamente, estamos, hoje em dia, a assistir a um remake dessa campanha com petições, agitações, artigos na imprensa, milhões de posts nas redes sociais, filmes, séries de televisão, pressões para alterar narrativas históricas e exigências de reparação materiais ou simbólicas. Porquê? Porque é que o movimento woke coloca tudo isto de novo sobre a mesa? Porque é que reproduz os passos e os métodos do abolicionismo? A resposta é simples. Os mentores do wokismo sabem que os métodos dos abolicionistas de outrora se impuseram e triunfaram, sabem que essa estratégia foi vencedora, e lançam mão dela de uma forma quase ipsis verbis para o seu combate.
Mas que combate é esse? É aí que há uma diferença abissal entre as iniciativa de há 250 anos e as de agora. A campanha a que James Stephen, Wilberforce e muitos outros abolicionistas deram impulso tinha toda a razão de ser e só pecava por tardia. Era justa e imprescindível, visava pôr fim àquilo que começara a ser visto como uma iniquidade intolerável, uma horrenda desumanidade, um crime contra as gentes — era assim que, então, se dizia. Havia navios a cruzar o Atlântico, transportando milhões de negros escravizados, e a escravidão nas Américas e noutros continentes era uma chaga exposta aos olhos do mundo. O abolicionismo foi um enorme passo em frente na história do progresso humano.
Agora, porém, que gritante injustiça é que o movimento woke pretende corrigir? Que insuportável desumanidade é que quer proibir? Agora que já não há tráfico transatlântico de escravos nem escravidão, felizmente, o que querem os wokes para irem assim repescar uma receita antiga? O que alegam para tentar vender gato por lebre?
Dito de forma simples, o wokismo quer fazer do tráfico transatlântico de escravos e da escravidão nas Américas uma espécie de imagem de marca da expansão ultramarina europeia, quer fazer-nos crer que a escravatura por si só representa e resume essa expansão, e quer emendar, reparar, as suas consequências, ou seja, quer que paguemos novamente por elas e que aceitemos e adoptemos outra memória desses acontecimentos. E, à maneira dos abolicionistas de há 200 ou 250 anos, injectam informação — seleccionada, claro — e culpabilidade como primeiros motores da sua iniciativa, certos de que elas trarão arrependimento e reparação como trouxeram no passado. Por outras palavras, reactualizam e reactivam velhos sentimentos de culpa e de vergonha e tentam fazer-nos subir de novo os três degraus de James Stephen: primeiro, a tomada de consciência do crime; depois, o remorso; por fim, a reparação.
Os resultados da subida desses degraus começam a aparecer porque a injecção da culpa está a fazer o seu caminho na consciência e nas emoções das pessoas. Soube há três semanas que a cidade de Evanston, no Illinois, decidiu atribuir 400 mil dólares a 16 descendentes de escravos e que tem mais 9,6 milhões para distribuir por pessoas em idênticas circunstâncias. Consta que São Francisco, na Califórnia, irá seguir o exemplo de Evanston, tal como centenas de outras comunidades desejosas de estabelecer os seus próprios programas de reparações pela escravidão. Ou seja, nos Estados Unidos, e uma vez que os poderes federais e central não decidem, avança-se a nível local, por iniciativa de quem se sente carregado de culpa e de arrependimento.
Portugal não tem uma tradição de iniciativa local semelhante ou equivalente à dos norte-americanos, mas os/as wokes nacionais também martelam as teclas da culpa e da vergonha e não escondem a esperança de que elas frutifiquem no nosso jardim á beira-mar plantado. E é efectivamente possível que isso aconteça. Não entre as pessoas da minha geração e da geração anterior, que fizeram a guerra em África e o 25 de Abril, mas nas gerações mais novas, muito expostas e permeáveis, nas escolas e fora delas, ao wokismo. Há mais de duas décadas que me insurjo contra essa ideologia e, nos últimos anos, tenho-me esforçado por dizer a quem me lê que deve ter cuidado com a absorção emocional de culpas históricas. Essa coisa de culpar as pessoas por coisas feitas por gente da mesma terra ou nação num distante passado tem precedentes sinistros. Pense-se, por exemplo, na Idade Média e nos muitos judeus que foram culpabilizados pela morte de Jesus e trucidados por isso.
Em 2023 não há razões para que nos sintamos culpados ou envergonhados pelo nosso passado colectivo, mesmo quando estão em causa coisas tão horríveis como o tráfico transatântico de escravos. A reparação histórica desse horror já foi feita há cerca de 160 anos. Haverá quem diga que os portugueses deveriam sentir embaraço pela forma como esse tráfico foi abolido e suprimido nas colónias portuguesas em África. E, sim, já houve razões para esse embaraço quando Portugal, chegado à era do abolicionismo, arrastou os pés, contemporizou com o comércio negreiro e foi protelando o combate a esse flagelo. Ao contrário do que pretende uma antiga teoria nacionalista o nosso país não teve, nessa área, um papel de vanguarda. Mas não se fique com a ideia de que não teve papel algum pois a partir de 1840 os governos portugueses passaram a combater o tráfico de escravos e, ao fazê-lo, foram-se redimindo de muitos anos de indiferença e de inoperância. De 1840 em diante, Portugal contribuiu, à sua escala, para acabar com o tráfico transatlântico e — o que raramente se diz — também com o tráfico de escravos feito, no Índico, para países muçulmanos. E não se alegue que o nosso país estava apenas a desmantelar aquilo que ele próprio criara, porque o tráfico no Índico era muito anterior à chegada de portugueses àquelas paragens e corria inteiramente à margem e à revelia deles.
O passado de Portugal, como de qualquer outro país, é feito de boas e más acções, e, num plano mais geral, de políticas generosas ou condenáveis. É preciso pôr ambas as coisas à frente dos nossos olhos para termos uma visão equilibrada e justa da nossa história, incluindo, claro, a do nosso império colonial. E é também necessário ter presente que estamos a viver uma campanha ideológica e política de grande envergadura que tenta fazer-nos subir os três degraus de James Stephen. Essa campanha procura inculcar a culpa no mundo ocidental e particularmente em Portugal, apresentando-o como o país negreiro por excelência. Irá essa campanha, que vai colhendo frutos no exterior, colhê-los também aqui? Depende de nós. O que está em causa, como Nigel Biggar lembra no seu quase cancelado Colonialism. A Moral Reckoning (2023) não é apenas a verdade acerca do passado. É, também, a própria segurança actual e futura do Ocidente. Por isso, eu gostava que os meus leitores se lembrassem do seguinte: os wokes nacionais estão convencidos de que haverá, em Portugal, muitos pecados por redimir e muitos descendentes de escravos por compensar. E na cabeça deles até haverá. Felizmente é só na cabeça deles. A nossa não é obrigada a enfiar essa e outras carapuças.