Dos debates e dos comentários aos debates para as eleições legislativas resulta uma certeza: Portugal continua “na cauda da Europa”. Somos, claramente, o país mais à esquerda do Continente, em termos ideológicos, partidários e mediáticos, e na economia e na sociedade sofremos as consequências disso. Apesar do aparecimento do Chega e da afirmação conservadora do CDS, o eixo político-partidário português permanece exoticamente enviesado à esquerda e enfeudado à extrema-esquerda.

O mesmo acontece com as manifestações mais correntes da opinião disseminada. E não estou só a falar do panorama mental de alguns comentadores de programas de entretenimento, que chegam a mostrar-se chocados e surpreendidos por o Papa Francisco ser, afinal, católico; e um “católico fundamentalista”, que, apesar do carinho repetidamente demonstrado pela líder do Bloco de Esquerda e pela “opinião evoluída”, ousa lamentar a quebra dos nascimentos na Europa e o facto de muitos casais não se abrirem à vida, concentrando em animais de estimação afectos menos exigentes e duradouros. Nem falo só da boçalidade e ignorância exibidas nas redes sociais e caixas de comentários ou do grau zero de Humanidades no discurso político. Falo sobretudo da ausência de política nos debates políticos, onde não há ideias políticas e muito menos as ideias políticas que hoje contam e dividem o mundo.

O que ouvimos sobre o mundo, a geopolítica ou a geoeconomia globais? O que é que pensam os partidos portugueses sobre a nova guerra fria China-Estados Unidos? O que nos dizem sobre a União Europeia e o debate entre os países defensores de uma Europa mais identitária, de uma Europa das Nações, e os mais federalizantes? O que propõem quanto aos eixos tradicionais da política externa de Lisboa – euro-continental, anglo-atlântico e lusófono? E problemas como o peso do investimento chinês em Portugal em sectores estratégicos, alguém fala deles?

E, contudo, para um país da periferia euro-americana, cuja sorte dependerá da evolução do centro, essas são questões determinantes.

Também não se fala de valores nem de princípios. Os partidos de extrema-esquerda, como o BE ou o PCP, calam as suas referências históricas trotskistas ou estalinistas sem que ninguém lhes pergunte por elas. Aparecem como tranquilos democratas de sempre, preocupados com as liberdades públicas, com memórias do tempo do “fascismo” e da “ditadura”, que veem reencarnados no Chega de Ventura ou espreitando no CDS de Francisco Rodrigues dos Santos – os únicos “demagogos” na sala, entre lágrimas vertidas em directo em prol de minorias de eleição, num país onde a miséria e a pobreza contaminam já as classes médias e as maiorias.

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Discutir valores políticos, hierarquizar princípios – a Nação, a Europa, o Mundo, a Liberdade, a Igualdade, a Vida –, relacionar e equacionar hipotéticos dilemas entre esses valores, ninguém faz. E introduzir esses valores, ideias e princípios nas linhas programáticas dos Partidos, também parece ser pouco interessante para os próprios e para “as audiências”. Assim, a futilidade e o maniqueísmo perturbam os debates e as teorias da conspiração abrem caminho. À esquerda, ao centro e à direita.

Depois dos debates vêm os comentadores, uns mais sossegados, outros mais excitados. Aqui, com honrosas e conhecidas excepções, imperam o maniqueísmo e as teorias da conspiração de esquerda, que dão pelo nome de “neutralidade” e “objectividade”. Quase todos, inteligentes ou básicos – os inteligentes, por causa da vaga direitista que vai pelo mundo e pela Europa, os básicos, porque são mesmo assim –, parecem firmemente convencidos de que o Mal está em progresso no universo desde que Trump e Bolsonaro assomaram ao poder. E é um mal absoluto, como para os velhos cristãos eram os mafarricos que povoam os assustadores infernos de Bosch, ou como para os nazis eram os judeus.

E sendo a prioridade combater esse Mal Absoluto – que, evidentemente, encarnou na Direita ou na “extrema-direita” –, vale tudo para o combater. Por isso, para a legião dos comentadores, o partido de Ventura, o próprio Ventura e os seus potenciais eleitores são claramente sub-humanos, Unmensch, e devem ser tratados como tal. A partir daí, ai de quem ouse esboçar um gesto conducente a uma eventual normalização dessa espécie de leprosos da política – ou do género humano.

Antíteses à direita, domínio à esquerda

De resto, nos partidos que aqui poderiam aproximar-se das direitas europeias – o Chega dos populares identitários e o CDS dos conservadores democrata-cristãos –, há coisas que podiam estar presentes e outras que eram dispensáveis.

André Ventura podia dar algum descanso aos ciganos e ao agravamento das penas e falar da desnacionalização da economia portuguesa, com a entrega de sectores estratégicos – Banca, Seguros, Indústria – a mãos estrangeiras; ou da desmoralização de um Estado que prefere oferecer a morte a tratar da vida dos mais frágeis e desprotegidos. Podia também ser mais claro na rejeição da regionalização e, em matérias de Justiça, que lhe são tão caras, na denúncia da desigualdade de acesso à Justiça. E Rodrigues dos Santos, que se tem esforçado por trazer alguma afirmação de princípios conservadores e democrata-cristãos ao eleitorado e ao partido conservador e democrata-cristão, escusava de alinhar com a Esquerda e com a cartilha reinante no insulto pronto e gratuito ao “fascista André Ventura”.

Olhando o panorama político, ideológico e económico que fica, não restam dúvidas de que estamos, de facto, “na cauda da Europa”, como diziam os antifascistas do antigamente. E nesta “cauda da Europa”, entre o analfabetismo dominante e a pobreza de ideias, a Esquerda continua a ter espaço de sobra para dominar o discurso ideológico e ditar a “normalidade”. E reina, não apenas nos seus dois partidos mais radicais – o PCP e o Bloco – mas no PS e até no PSD, cujo líder se declara de centro-esquerda. Devemos também ser o único país da Europa em que o político que pretende representar a direita conservadora chama insultuosamente “Fascista!” ao candidato da direita popular, granjeando o aplauso das esquerdas. Pergunto-me se alguém imagina, numa discussão entre o PCP e o BE, uma troca de insultos paralela – o arremesso de um “Estalinista!” ou de um “Trotskista!” que seja.

Porque é que isto é assim?

Porque é que isto é assim? São muitas décadas de abandono da cultura política ou de algo que com tal se pareça. São os vinte anos finais do Estado Novo, em que o pensamento político à direita secou, monopolizado pela figura de Salazar, glosado pelos acólitos e ignorado pelos tecnocratas; são os anos que se lhes seguiram de lavagem cerebral e de limpeza ideológica antifascista, com a submissão das direitas toleradas no pós-25 de Abril aos cânones da esquerda, por razões de sobrevivência, e a ascensão da direita da Esquerda como única Direita.

Depois, a partir do fim da Guerra Fria, Portugal não passou pelos fenómenos que percorreram as economias avançadas do Ocidente, com a globalização económica e o globalismo político-cultural das elites neoliberais, que levaram à desindustrialização da Europa (com excepção da Alemanha) e de parte dos Estados Unidos.

Com a globalização, a desindustrialização, a crise demográfica e a abertura das fronteiras às migrações culturalmente diversas, os povos europeus voltaram a ser sensíveis à importância da nação, da fronteira e da identidade. A Ocidente, em França, por exemplo, surgiu uma literatura política realista, centrada em alternativas ideológicas e culturais adaptadas aos tempos de hoje. Ao mesmo tempo, da Europa Central pós-soviética à Espanha, despontaram e afirmaram-se, no governo ou na oposição, movimentos e partidos de Direita, uns mais nacionalistas outros mais conservadores, mas com um pensamento nacional e identitário claro, que, entretanto, foi trabalhado e estruturado em livros, em revistas, em jornais, em redes sociais.

Aqui, continuamos na Idade da Pedra do antifascismo da ignorância em transição directa e acelerada para a pós-modernidade da Cultura do Cancelamento, enquanto os debates políticos ignoram qualquer movimento de ideias na Europa e no mundo e se desinteressam do que quer que tenha a ver com a Geopolítica do século XXI ou com a configuração da Europa e as suas decisivas consequências para a política nacional.

Assim sendo, não admira que os resultados de 30 de Janeiro não tragam alterações substanciais ao panorama político nacional – nem que, sob o arco-íris do “vai ficar tudo bem”, continuemos a ir de mal a pior.