Em tempos de tão afirmada brutalidade, o passado constitui, por vezes, o único e mais reconfortante refúgio que poderemos eleger. A notícia passou quase despercebida. À primeira vista pareceu algo menor, redundante e insignificante, mas de facto, não é. No passado dia 7 de Dezembro o museu do Louvre expôs a primeira pintura quinhentista portuguesa do seu vasto acervo. A sua aquisição, anunciada pela instituição em Outubro, assinalava um pormenor interessante – a afirmação clara de se tratar de um exemplar de primeira ordem da arte renascentista portuguesa. O termo não é aplicado aqui de forma inocente. De facto, apelidar a pintura quinhentista portuguesa de “Renascentista” encerra um inovador grau de entendimento, não só por evidenciar a grandeza da arte produzida nas oficinas portuguesas, mas também por formular uma obrigatória reflexão em torno do próprio significado do termo “Renascimento”. Desde sempre apelidada de “primitiva”, de resto à semelhança das suas congéneres flamenga e francesa, a pintura portuguesa de finais do século XV e da primeira metade do XVI constitui uma verdadeira revelação no âmbito historiográfico europeu. A reconfiguração do seu estatuto é uma notícia extraordinária. Será aquilo que Wittgenstein designava por acertar na cabeça do prego. Quantas mais vezes melhor. De facto, e apesar da demora, algo se move na rígida e monolítica edificação histórica da idade moderna. A primeira martelada no que à cultura portuguesa diz respeito ocorreu com a exposição L’Âge D’or de la Renaissance Portugaise que esteve presente no Louvre entre 10 de Junho e 10 de Outubro 2022,  e que foi reveladora de uma emergente revisão conceptual da historiografia da arte europeia. Importa, pois, reflectir acerca da relevância que a aquisição e exposição desta magnífica Ressurreição de Cristo de Garcia Fernandes e Cristóvão de Figueiredo, constitui para a cultura portuguesa.

Talvez um dos aspectos mais relevantes se prenda efectivamente com aquilo que o galerista luso-francês Philippe Mendes, genuíno impulsionador desta conquista, afirmou: “De hoje em diante, a escola portuguesa de pintura do século XVI passa a ombrear em pé de igualdade, e respeitando a sua linguagem artística própria, com as grandes escolas de pintura espanhola, italiana ou holandesa”. Linguagem artística própria… Basta recordar o magnífico Inferno de mestre desconhecido, pintado entre 1510 e 1520, para compreender a razão de ser dessa linguagem artística tão singular. A representação central de um demónio trajado com vestes ameríndias, a uma escassa década da descoberta do Brasil, revela-nos o modo como a «novidade» do outro se inscreveu nas dinâmicas visuais das oficinas portuguesas. Já anteriormente, por volta do início do século XV, esse ente inovador tinha sido representado de forma sublime por Vasco Fernandes e Francisco Henriques na magnífica Adoração dos Reis Magos do retábulo da capela-mor da Sé de Viseu. Um mundo visual composto igualmente pelos objectos que chegavam ao reino. De facto, o modo como o pintor Jorge Afonso, na sua sublime Anunciação, ousou representar a virgem sobre uma esteira congolesa, marca inequivocamente a mestria, mas sobretudo, a novidade que reinava nas oficinas portuguesas. Esta é a marca do genuíno “Renascimento” português – uma abertura a um mundo em permanente revelação.

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De facto, quis um acaso do destino que nos séculos XV e XVI, inúmeros portugueses — navegadores, pintores, cartógrafos, mercadores, entre tantos outros -v- se encontrassem precisamente na primeira linha de contacto com a novidade e a revelação de um mundo até aí encoberto. Bem sabemos a ofensa que estas palavras constituem, hoje, para o tautológico pensamento woke e subsequente cultura de cancelamento, mas a realidade histórica impõe-se sobre a vontade distorcida de quem a quer ver travestida em algo que, de facto, nunca foi. «Fazemo-nos imagens dos factos» tal como afirmou Wittgenstein. Uma imagem constitui, no seu entender, um modelo da realidade. A imagem é ela própria um facto. Assim sendo, o que nos contam as imagens produzidas pelos pintores portugueses dos séculos XV e XVI? Revelam-nos sobretudo que a novidade e a vanguarda do mundo foi lentamente desvelada por estes homens, que ousaram não apenas descrever e representar um mundo até aí desconhecido, mas que contribuíram inequivocamente para a sua gradual descodificação.

O afã pelo conhecimento constitui uma marca intrínseca do pensamento português desse período, e o início dessa transformação é, de facto, datável. Com efeito, basta recordar a primeira das cinco razões que Gomes Eanes de Zurara atribui ao Infante D. Henrique para mandar buscar as terras de Guiné, para compreender a procedência desta inefável adição pelo conhecimento: «(…) porque o dito senhor quis (…) saber a verdade (…)». Saber a verdade – conhecer. Eis o verdadeiro santo-e-senha da mentalidade portuguesa dos séculos XV e XVI. A sua relevância para a história cultural e científica global é, de facto, indiscutível. Para o filósofo da ciência Thomas Kuhn, este período de viagens e explorações, cinquenta anos antes do nascimento de Copérnico, inserem-se num claro jogo de causa-efeito com as futuras transformações ontológicas na relação do homem com o cosmos. O gradual sucesso das viagens empreendidas pelos portugueses, induziram sistematicamente a necessidade de obter melhores imagens, mapas e técnicas de navegação, e estas, encontravam-se em estrita concordância com um gradual e amplo conhecimento dos céus. Deveremos, pois, questionar-nos acerca da razão para este facto insofismável tardar a ser inscrito na história cultural do «Renascimento». É um facto, que de acordo com o historiador oitocentista Jacob Burckhardt, terão sido os italianos e não os portugueses a ousar descobrir e representar o mundo… Incompreensivelmente, esta afirmação com cerca de 150 anos teima, ainda hoje, a fazer escola. No século XIX confundiu-se renascimento com Itália, e o conceito ficou perenemente inscrito na mentalidade europeia. Tudo o que não era italiano ou fiel ao figurino italiano, seria doravante apodado de primitivo, de rústico, de pouco sofisticado. Falemos então de «Renascimento», com maiúscula. Efectivamente, falar de «Renascimento» é endereçar um título a todo um período histórico que, paradoxalmente, nunca o utilizou. A sua origem deriva da adopção novecentista do modelo de Petrarca, que desde o século XIV rejeitava os séculos precedentes, designando-os de Media Ætas, anunciando assim uma renovação da bela antiguidade. O termo «Renascimento», em italiano Rinascimento ou Rinascita, tal como surge nos textos do século XVI, afirmar-se-á apenas em meados do século XIX, muito embora, estivesse já em circulação enquanto designação de um momento específico da história de Itália. Serão autores como Jules Michelet ou Georg Voigt que irão consagrar o termo, substituindo definitivamente a palavra Risorgimento, adoptada amiúde pelos antigos historiadores italianos. A confusão instalada levou a uma equívoca história dos estilos, no lugar de uma visão clara e objectiva sobre as idiossincrasias de cada geografia e cada período histórico.

Falar de «Renascimento» é assim falar sobre uma soma de equívocos. Equívocos históricos, geográficos, tipológicos e fenomenológicos. Para Rémy de Gourmont existe ainda uma outra substância igualmente prejudicial – a hereditariedade: «Um erro caído no domínio público nunca mais de lá sai; as opiniões transmitem-se hereditariamente. Isso acaba por fazer a História». Assim sendo, qual terá sido o erro hereditário que condenou até hoje a pintura portuguesa quinhentista à condição menorizante de manifestação «primitiva» e periférica? A permanência de uma teimosa história dos estilos em detrimento de uma real história da arte focada na particularidade das linguagens artísticas periféricas.

O convite ao leitor fica desde já formulado. Um passeio pelo sempre magnífico, mas infelizmente pouco concorrido Museu Nacional de Arte Antiga. Contemple o prodigioso mundo que os pintores quinhentistas portugueses ousaram representar, e sobretudo, questionar. É um facto que Portugal vivia por esta altura tempos de excepção, pois nunca em nenhum momento da história da humanidade se havia assistido a uma descoberta tão súbita do mundo e à urgência de o medir, mas sobretudo, de o representar. E nós, fizemo-lo de um modo único e exemplar — o sublime Renascimento Português.