Há uma frase por aí a circular e a ser postada e repostada por pessoas insuspeitas e que me merecem todo o respeito, mas que, infelizmente, não só não tem contexto como está errada. Profundamente errada. Não basta postar qualquer coisa para parecer bem. É preciso pensar um mínimo sobre onde nos levam estas coisas aparentemente bonitas.
A frase é esta: “Daqui a 20 anos, as únicas pessoas que se vão lembrar de que você trabalhou até tarde serão os seus filhos”. Olhei, li-a e reli-a inúmeras vezes e não consigo encontrar nem qualquer contexto nem qualquer sentido para a mesma.
Se eu cheguei tarde do trabalho eu contei aos meus filhos porque o fiz. Aliás, eles sabem-no.
Se eu nem sempre estive em casa a horas de os ver foi porque procurava num projeto profissional, numa entrega por paixão e com propósito, como agora se diz, encontrar também um sentido para a vida.
Algum profissional de saúde decente deixa a meio uma cirurgia ou um doente que dele precisa só para que os seus filhos não se lembrem de que chegou tarde a casa?
Algum professor deixa a meio uma aula, deixa de tirar dúvidas aos seus alunos, que se prolongam, deixa de ajudar e apoiar e estar lá para eles só para que os seus filhos não se lembrem de que chegou tarde a casa?
Algum gestor deixa a meio o fecho de um negócio, se abstém de uma reunião fora, importante, para procurar levar a empresa mais longe só para que os seus filhos não se lembrem de que chegou tarde a casa?
Não, o que está aqui em causa nem tão pouco somos nós enquanto seres individuais. Somos nós face aos outros. São os doentes, são os alunos, são as pessoas da empresa que esperam mais e melhor de nós. E se não são, deveriam ser.
Ficaria muito triste se um dia os meus filhos me dissessem que não me conheciam nenhum projeto, não se lembravam sequer de eu ter chegado tarde ou não entendessem, igualmente, porque é importante procurar deixar uma marca nos outros, porque é importante procurar melhores dias para aqueles que servia na minha empresa. Ficaria mesmo muito triste.
O que importa se os meus filhos se lembram dos dias que cheguei atrasado? Nada. Importa sim se conseguem olhar para as chegadas tardias, mas são capazes de sobrepor a isso um pai esforçado, um pai que esteve lá quando eles precisaram, que brincou com eles, que procurou proporcionar-lhes um bom projeto educativo, que foi ver um deles em várias finais de TeamGym a sagrar-se campeão nacional, que foi ver outro deles enquanto federado em ténis de mesa a procurar chegar sempre mais longe, que foi ver um terceiro a nadar fantasticamente. Que os acompanhou ao futebol a ver a sua equipa jogar. Que nem sempre os foi levar ao colégio ou acompanhar ao médico, verdade. Mas que, efetivamente, procurou conciliar, muitas vezes sem conseguir, aquilo que precisavam de mim e aquilo que conseguia dar. Que não faltou nos momentos importantes ou que procurou juntá-los sempre em férias e em fins de semana com deveres que não foram cumpridos em detrimento dos nossos momentos. Que falou com eles quando precisavam de opiniões. Que os ajudou a pensar. A decidir. A formular, paulatinamente, um projeto de vida. E um projeto baseado no exemplo.
Há trocas imensas. Há desafios imensos. Há tempos que custa não estar com eles. Muito, muitíssimo. A eles e a nós. Mas há também um projeto profissional, ou projetos, que muitas vezes não conciliam com frases destas.
Porque não somos armários de gavetas que abrem e fecham a determinadas horas.
Porque não somos robots programados para estar sempre de um lado ou sempre do outro a horas específicas.
Somos humanos.
Falhamos.
Seria triste, desastroso, isso sim, que a única coisa de que lembrassem em mim fossem as vezes que os “troquei” pelo trabalho. As vezes em que cheguei atrasado. E tenho a certeza que não é nada disso que recordam em mim. Seria péssimo que não sentissem que o trabalho me fazia também bem. Que o trabalho foi igualmente um exemplo central para eles. Isso seria demolidor. Porque eles mesmos têm e terão de trabalhar e têm e terão muitíssimos trade-offs e desafios ao longo da vida. Seria mau se não considerassem que muitas das coisas que fiz lhes ficaram como exemplo.
Antes ser lembrado por ter chegado atrasado, mas com propósito, do que não chegar atrasado e ser um triste que nunca procurou uma marca, uma entrega aos outros, que se borrifou para os seus alunos ou os seus trabalhos de gestão e responsabilidades profissionais.
E se bem me lembro, e em semana de Jornadas Mundiais de Juventude, goste-se ou não acabo com uma frase do Papa Francisco que, essa sim, faz todo o sentido: “Não viemos a este mundo para estar parados, para passar os dias comodamente, para fazer da vida um sofá que nos adormeça. Pelo contrário, viemos para deixar uma marca”. Nos nossos filhos, claro. Mas em todos aqueles com que nos cruzamos e em função das responsabilidades que assumimos. E para deixarmos uma marca nos nossos filhos temos muitas outras pessoas com que nos preocupar para que essa marca possa ser efetiva. Só deixaremos uma marca nos nossos filhos quando eles nos virem como um exemplo de dedicação e paixão pelo que fazemos e pelos esforços de conciliação que sempre fizemos em todas as entregas: a eles e aos outros. Ou aos outros e a eles.