O Serviço Nacional de Saúde foi fundado há 40 anos.
Aquando da apresentação do projeto-Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde na Assembleia da República, em 19 de dezembro de 1978, António Arnaut descreveu-o como sendo um projeto revolucionário, humanista e verdadeiramente patriótico.
“Revolucionário, porque transformou as estruturas existentes e operou uma mudança qualitativa nos serviços e instituições, à data, existentes.
Humanista, porque libertou os cidadãos do espectro de doença e os doentes da angústia do desamparo. O Serviço Nacional de Saúde tomou pela primeira vez os cidadãos como sujeitos de direitos e elos imprescindíveis da grande cadeia solidária da comunidade.
Patriótico, porque sendo um serviço para todos, se destinou fundamentalmente ao povo e ao país real, das crianças desvalidas, dos pobres e vulneráveis.”
António Arnaut terá sido o “pai do Serviço Nacional de Saúde”. Mas hoje, 40 anos passados, o Serviço Nacional de Saúde é um projeto coletivo e por isso não faz sentido tentar pintá-lo com a cor de um só partido. Mesmo que tentássemos fazê-lo, atendendo às recentes “trapalhadas” entre Marta Temido, ministra da Saúde desde outubro de 2018, e Maria de Belém Roseira, ministra da Saúde de outubro 1995 a outubro 1999, escolher um tom de rosa do agrado de todos não seria fácil .
O SNS foi desenhado de forma a dar respostas à realidade epidemiológica de um Portugal passado, repleto de doenças infecciosas. Criaram-se hospitais e serviços de urgência. Mas o Portugal de hoje precisa de mais. O Portugal de hoje exige uma visão inovadora da saúde que dê melhores respostas no presente e prepare o Futuro.
Das listas de espera à desmotivação dos profissionais de saúde, são vários os constrangimentos identificados ao atual modelo. Muitos responsabilizam a forma como a Lei de Bases da Saúde está escrita por esses problemas. Por esse motivo, colocam-se grandes expectativas no processo de revisão desta lei.
Enquanto jovem, preocupa-me a sustentabilidade do SNS. A garantia dessa sustentabilidade não pode assentar apenas numa visão assistencialista. O tempo da saúde feita dentro de hospitais é passado. A mesma forma de pensar causa, normalmente, os mesmos resultados. Portanto, se queremos construir um Serviço Nacional de Saúde sustentável, temos de pensar diferente.
Adalberto Campos Fernandes deu a Maria de Belém Roseira, personalidade de inquestionável prestígio na área da Saúde, a difícil tarefa de desenhar uma nova Lei de Bases. O fruto de meses de consultas às mais diversas personalidades da sociedade portuguesa pelo Grupo da ex-ministra da Saúde foi um documento exaustivo, mas comprometido. A equipa ministerial de Adalberto Campos Fernandes e Fernando Araújo acabou por densificá-lo ainda mais, concretizando-o em áreas tão estratégicas como, por exemplo, a criação de Bases dedicadas aos Estilos de Vida Saudáveis. O projeto da nova Lei de Bases tinha então 59 bases, grande parte delas totalmente novas.
Confesso que tive esperança que esta fosse uma lei diferente das outras. Uma Lei que, de facto, comprometesse e responsabilizasse os Governantes presentes e futuros. Uma Lei de projetos e atos e não apenas de palavras redondas. Uma Lei que permitisse um verdadeiro pacto para a área da saúde que durasse muitos anos.
Poucos dias antes do documento ser levado a Conselho de Ministros por Adalberto Campos Fernandes, António Costa levou a cabo a maior remodelação Governamental do seu mandato. Marta Temido ocupou o lugar de Adalberto Campos Fernandes. Esperava-se continuidade.
Passaram-se apenas dois meses desde que a nova ministra tomou posse. Uma das suas tarefas terá sido a de dar o cunho da sua equipa ao projeto da Lei de Bases que recebeu pronto. Tal intenção era perfeitamente compreensível.
Infelizmente, “a montanha pariu um rato”. Ou antes, a atual equipa ministerial conseguiu fazer uma versão da Lei de Bases mais “pequenina”. As 59 bases do documento do executivo de Adalberto Campos Fernandes, construídas sobre as propostas do Grupo de Trabalho de Maria de Belém Roseira, foram convertidas em menos de metade (28) em tempo recorde. Terão as necessidades essenciais do Serviço Nacional de Saúde mudado tanto em apenas meia dúzia de semanas?
Muitos dizem que as alterações profundas feitas pela recém empossada equipa do Ministério da Saúde foram em si uma grave desconsideração pelo trabalho desenvolvido pelos seus antecessores. Outros afirmam que a nova equipa procedeu a uma descaracterização grave das propostas de Maria de Belém Roseira e de todas as dezenas de personalidades que deram os seus contributos para o Projeto da Lei de Bases construído até 15 de Outubro.
A título de exemplo, o documento levado a Conselho de Ministros por Marta Temido não faz uma única referência às responsabilidades do Estado na promoção da Alimentação Saudável ou da Atividade Física, numa perspetiva de Saúde. A área da Saúde Pública está reduzida a segundo plano com apenas uma base feita de três tópicos redondos. O tema da descentralização de competências para a esfera das autarquias é omitido por completo.
Diz o ditado popular: “A mulher e a sardinha querem-se pequeninas.”. No entanto, tenho duvido que o mesmo se aplique a projetos-Lei que definirão o futuro de uma das maiores conquistas do Portugal democrático.
A Lei de Bases da Saúde aprovada no Conselho de Ministros da passada semana é vaga, redonda, e estéril. Na sua ambição de minimizar a Lei de Bases da Saúde, o atual executivo do Ministério da Saúde eliminou a maior parte das inovações mais relevantes que a nova Lei imporia a quem governa. Neste contexto vem-me à memória o clássico “Il Gattopardo” de Giuseppe Tomasi di Lampedusa que refere que é preciso que tudo mude para que tudo fique como está.
Perdida esta oportunidade para desenhar um Sistema de Saúde para as futuras gerações através de uma nova Lei de Bases da Saúde visionária e inovadora por iniciativa do Governo, resta agora ter esperança na soberania da Assembleia da República. Terão os deputados a capacidade e vontade de devolver a densidade necessária à nova Lei de Bases da Saúde?