Sou funcionário público, filho de funcionário público. Beneficio da ADSE desde a sua criação. Inicialmente o modelo de apoio era o de, feita a despesa pelo funcionário, a ADSE reembolsava, passado um dado período, parte da mesma e contra, obviamente, os respectivos justificativos (recibos, receitas, etc.).

Entretanto o sistema evoluiu, o método anteriormente descrito ficou limitado às consultas clínicas, sendo introduzida a figura da convenção em que a ADSE convencionava com um prestador de serviços de saúde um determinado custo unitário para cada serviço específico e, desse custo, o doente pagava uma parte (já não reembolsável ou comparticipável) e a ADSE assumia o remanescente. A evolução continuou, abrangendo serviços clínicos e hospitalares cada vez mais diversificados.

Para beneficiar destas regalias, é descontada no meu ordenado uma percentagem fixada por lei (que terá sido aumentada em 1% no ano transacto – mas isso não vem agora ao caso). Com essa “despesa” (ou mais correctamente, perda de rendimento) aufiro de benefícios que, em muitas situações, considero chocantemente inigualitários relativamente aos meus concidadãos que não são beneficiários da ADSE.

O mais chocante são as consultas médicas convencionadas: a ADSE convenciona com uma variedade amplíssima de clínicos, clínicas e hospitais um acordo em que eu, por uma consulta seja ela de clínica geral ou de especialidade, pago a quantia de 3,99 euros (sim, leram bem: três euros e noventa e nove cêntimos). Os seja, eu pago menos numa consulta convencionada privada do que pagaria de Taxas Moderadoras no SNS!

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A adicionar a isto temos os preços irrisórios do um número vastíssimo de outros serviços clínicos que fazem com que, por exemplo, um check-up geral, me custe, em média. 50 (cinquenta) euros incluindo todas as análises, TACs, ressonâncias, RX ou outros meios auxiliares de diagnóstico que a clínica privada, através do médico que me examina, considere relevante fazer.

Poderia referir outros aspectos menos chocantes como uma intervenção cirúrgica com internamento em quarto individual que me ficou por metade do custo que o Hospital cobraria em situação não convencionada (aqui os valores são menos chocantes e as percentagens de cobertura mais aceitáveis).

O que eu queria concluir desta descrição é que, considerando a ADSE um serviço de extrema utilidade e benefício, cujo modelo e, eventualmente, cuja população abrangida poderia, direi melhor, deveria ser alargada, não posso deixar de me sentir profundamente revoltado com os montantes que pago por uma qualquer consulta ou um meio complementar de diagnóstico.

Revoltado porque, sendo um funcionário de topo da Administração Pública, tenho disponibilidades financeiras que outros funcionários não têm e que a maior parte dos cidadãos também não têm. Apesar de (por o desconto ser uma percentagem do meu vencimento), eu contribuir proporcionalmente mais para o sistema, considero inaceitável o valor ridículo que pago por essas consultas e meios auxiliares de diagnóstico.

Revoltado, em segundo lugar, porque estou a ser beneficiado relativamente aos restantes cidadãos que pagam bastante mais em termos de Taxas Moderadoras, por um serviço que não tem a elasticidade, imediaticidade e liberdade de escolha que a ADSE garante.

Revoltado, porque o conceito de Taxa Moderadora é o de moderar o afluxo desnecessário aos serviços de saúde, libertando espaço, tempo e recursos para quem deles realmente necessita, o que significa que, no caso da ADSE, ele não só não é desmotivador, como mesmo incentivador (pelo valor ridículo de custo), transformando a ADSE numa financiadora líquida das Instituições Privadas de Saúde, o que, considerando-as necessárias e da maior importância, não pode justificar que se subvertam leis de mercado, subsidiando indirectamente essas instituições (pelo menos na minha opinião de simples utilizador e desconhecedor dos balanços de custos finais).

Por fim, queria ainda referir que não me incomoda que muitos dos meus colegas da Função Pública paguem os 3,99 euros por consulta (apesar de achar que os valores deveriam ser equiparados aos das taxas moderadoras do SNS). O que defendo é que deveria haver progressividade no valor cobrado, de acordo com o escalão remuneratório (e isto é tão válido para a ADSE como para o SNS). Afirmarão: “mas eu já contribuo mais por proporcionalmente descontar mais”. Afirmarão “na Constituição consta que os cuidados de saúde devem ser universais e gratuitos, pelo que não deverá haver lugar a qualquer pagamento, pelo menos no SNS”.

Respondo segundo duas linhas de pensamento:

1. Não concordo com a Constituição na sua formulação absoluta. Acho que os cuidados de saúde devem ser acessíveis a todos os cidadãos que deles necessitem, mas as despesas associadas devem ser de alguma forma comparticipada pelo cidadão: costuma-se dizer que não se dá valor ao que é gratuito. Muitos problemas do nosso sistema de saúde, como o consumo excessivo de antibióticos com gravíssimas consequências em termos do desenvolvimento de estirpes resistentes e cada vez maior dificuldade em lutar contra certas doenças derivam, exactamente, dessa desvalorização associada à gratuitidade tendencial.

2. Considero que, mesmo pagando mais impostos, a comparticipação a pagar pelos cuidados de saúde deve ser em regra tendencialmente crescente, já que, independentemente de em termos absolutos descontar mais, em termos absolutos também ganho mais e portanto deveria comparticipar mais, já que os cuidados de saúde têm uma curva de crescimento de custos mais do dobro superior à curva de crescimento dos rendimentos (devido ao permanente aparecimento de novos fármacos, ao desenvolvimento tecnológico, etc.), pelo que a única forma de compensar este crescente diferencial é a referida adequação dos valores de comparticipação individual ao rendimento absoluto e não um nivelamento que, mesmo considerando o diferencial de impostos, é sempre injusto.

Em conclusão:

1. A ADSE é um sistema eficaz com provas dadas. Não se justifica, contudo, que estabeleça convenções que potenciam a sobre utilização dos recursos clínicos, que favorecem os seu beneficiários relativamente ao comum dos cidadãos e que funcionam como forma indirecta de financiamento do sector privado, desequilibrando as leis do mercado e desviando, eventualmente, meios que poderiam beneficiar o SNS.

2. A ADSE, pelo seu lógica de funcionamento, baseada na livre escolha (que possibilita, por exemplo, a absoluta facilidade em ouvir uma segunda opinião, o que no SNS é quase ou virtualmente impossível) e no pagamento da consulta para posterior reembolso (com excepção das referidas situações convencionadas), funciona como um efectivo dissuasor da utilização indevida e excessiva dos fornecedores dos serviços de saúde.

Queria ainda referir que, quando falo em garantir a possibilidade de mais verbas para o SNS, num quadro de maior racionalidade na gestão de recursos, estou a incluir de modo muito claro, a remuneração dos profissionais de saúde – particularmente os enfermeiros, que prestando um serviço especializado de elevada responsabilidade, são pagos, comparativamente, abaixo de muitas outras carreiras de especialidade nomeadamente da Função Pública.

Para terminar, mostrando a ADSE, como terá acontecido no ano transacto, a sua viabilidade económica, não dependente de subsídios do Estado, antes gerando superavits (que no caso de uma empresa privada seriam reinvestidos na melhoria do serviço prestado), não vejo qualquer motivo, num país democrático, que se mantenha uma situação de “apartheid” parcial entre os funcionários públicos e suas regalias e os outros cidadãos que mesmo que estejam dispostos a pagar, não podem beneficiar dos mesmos serviços.

Como tal considero que, no quadro da racionalização dos sistemas nacionais de prestação de serviços de saúde, a abertura da ADSE a outros beneficiários que não os servidores do Estado e os militares deveria ser iniciada desde já.

Professor Universitário