Os leitores de BÍBLICA ouviram falar de uma nova Bíblia, traduzida apenas por uma pessoa, o prof. Frederico Lourenço, e pediram a minha opinião de caráter técnico sobre esta obra, que trata da palavra de Deus. Faço-o limitando-me apenas ao que se conhece neste momento: a introdução geral ao projeto, o I dos seis volumes prometidos (Os Quatro Evangelhos) e várias entrevistas publicadas.

E faço-o porque o tradutor se referiu ao meu nome no que toca às traduções da Bíblia em Portugal (DN, 18.09.2016,) e fez considerações explícitas sobre a tradução que coordenei para a Difusora Bíblica, em 1998 (O Sol, 01.X.2016). Mas também porque os leitores têm direito a ser esclarecidos, não apenas sobre uma tradução a partir da língua grega, mas sobre a tradução da Bíblia em geral; pois a Bíblia não é um livro qualquer.

Entretanto, apenas me pronuncio acerca de certas confusões destacadas pela linguagem do marketing jornalístico. Dizendo, desde já, que essa linguagem só tem prejudicado a obra e o seu autor, por lhe faltar a informação e a verdade exigidas para falar de um tema como este. Veja-se, por exemplo, o DN, 28.07.2016, onde se diz: «Bíblia dos Setenta, escrita entre os séculos I e VII» — quando a Setenta foi escrita no séc. III a. C.

1. O que é traduzir uma Bíblia?

O conhecido tradutor de obras clássicas gregas decidiu traduzir, sozinho, uma Bíblia. Como se um trabalho destes pudesse ser feito por uma só pessoa. De facto, como ele próprio esclarece, houve traduções feitas por um único tradutor: J. Ferreira Annes d’Almeida, o Padre António Pereira de Figueiredo e, já no séc. XX, o padre Mattos Soares.

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Os dois últimos, católicos, traduziram da Vulgata latina usada nessa altura, e não é qualquer pessoa da nossa praça que tem capacidade para contestar essas traduções. Elas têm os seus defeitos, mas também as suas virtudes; mas têm, sobretudo, um defeito fundamental: são obras de um único tradutor. Quanto a João Ferreira d’Almeida, é incorreto afirmar que ele traduziu a Bíblia a partir do hebraico e do grego. Isso, não só não está provado como é altamente duvidoso, sobretudo no que diz respeito ao hebraico.

Traduzir uma Bíblia é vencer a enorme distância entre a língua e cultura cristalizadas num texto-origem e a língua e cultura atual, no caso presente. Trata-se de um processo de transculturação, que tem as suas complicações. Cada livro da Bíblia é diferente dos outros, porque nasceu numa época culturalmente diferente, com o seu Sitz im Leben próprio; e tem, por isso, o seu vocabulário próprio técnico. Além disso, mesmo o Novo Testamento possui um substrato inegavelmente semita. Duvido que Lourenço, ao desconhecer o hebraico, tenha competência para entrar em todos esses meandros.

Portanto, traduzir todos e cada um dos livros de toda a Bíblia é tarefa demasiado complicada apenas para uma só pessoa, por mais conhecimentos que ela tenha da língua grega. Isso aconteceu no passado, é verdade; mas, hoje, tal tarefa é impensável. A não ser que se faça uma tradução preocupada, apenas, com os valores culturais do texto bíblico, isto é, traduzi-lo simplesmente como um texto comum, neutro.

Assim, esta é uma tradução possível e até culturalmente louvável, quando ficar no seu território próprio, sem invadir o terreno alheio; coisa que Frederico Lourenço, como salientam alguns destaques das suas entrevistas na imprensa escrita, por vezes parece não fazer nem aceitar.

2. Uma “Bíblia cristã” ou uma “Bíblia neutra”?

Por estas razões, a tradução em causa não poderá ter o valor de uma Bíblia cristã propriamente dita, pois esta é, essencialmente, o livro da fé de um povo, dirigido a um povo de fé. E a fé utiliza um vocabulário próprio, como qualquer ciência tem o seu. Portanto, na Bíblia, como em qualquer tradução científica, temos que utilizar, na língua de chegada (neste caso, o português), uma linguagem equivalente à do texto de origem. Até porque, possivelmente, o ilustre tradutor desconhece tal linguagem, pois se confessa de formação católica, mas “não praticante, há uns anos” (DN, 18.09.16). E também não consta que tenha formação superior em Teologia ou em Ciências Bíblicas.

Por esse motivo, poderíamos chamar à tradução do Professor Frederico Lourenço uma tradução cultural da Bíblia. De facto, como ele próprio afirma, esta será uma “Bíblia neutra”. Damos-lhe os parabéns pela honestidade, pois ele diz que não quis traduzir uma Bíblia propriamente cristã, porque esta tem uma linguagem própria; diríamos, “interessada”… em transmitir e fortificar a fé dos leitores / ouvintes, sem ser infiel à filologia; mas numa tradução da Bíblia, não basta ter em conta a filologia, o valor denotativo das palavras; também é necessário ter em conta a semântica, o género literário, as conotações, a simbologia e, sobretudo, as palavras da linguagem cristã, usadas através dos séculos para transmitir as verdades da fé. Assim, por exemplo, foi a linguagem da Vulgata (traduzida ou não) que configurou o vocabulário da teologia, da liturgia, da cultura da Europa cristã, em geral. E a Europa não perdeu nada com isso; pelo contrário, foi uma luz para muitas civilizações. Na liturgia, por exemplo, não se lê a palavra de Deus por uma Bíblia “neutra”.

Portanto, um bom tradutor da Bíblia, como livro de fé de um povo, não pode prescindir desse contexto de fé, que é o da Bíblia.

3. Que Bíblia devem ler os cristãos?

Pelo que foi referido, não estamos de pleno acordo quando o autor afirma que “os católicos têm tanto a ganhar em conhecer a fundo o Novo Testamento. Regressar à origem, à fonte…” (ib., p. 39). Dá a impressão que ainda não houve tradutores “a fundo”… Será que os tradutores da Bíblia, ao longo de 20 séculos, não tinham descoberto o Novo Testamento “a fundo”. Até hoje, não houve uma verdadeira tradução da Bíblia em geral e do Pai-nosso em particular? Dizer que, durante mais de 1500 anos, andámos a rezar o Pai-nosso mal traduzido em Portugal é, no mínimo, deselegante. Estamos perante um vocabulário, por vezes, polissémico, ao qual os cristãos de todas as épocas atribuíram determinado sentido. E que motivos temos nós para os reprovar? Será que a generalidade dos tradutores cristãos, até hoje, não sabia grego?

Também é de pasmar que o tradutor diga que encontrou o verdadeiro sentido das Cartas de S. Paulo, ao afirmar: “Às vezes pasmo com as traduções de S. Paulo, que se fazem por esse mundo fora e que dão uma imagem totalmente distorcida do texto do Apóstolo” (ib., p. 39). É caso para perguntar, uma vez mais: só agora, depois de 20 séculos, em tantas línguas europeias, apareceu, precisamente em Portugal, o verdadeiro tradutor de S. Paulo?

Por isso, afirmar que o “distanciamento” em relação ao cristianismo dá mais liberdade de tradução, dá mais liberdade ao tradutor, pode ser verdade, mas também pode significar falta de “rigor bíblico” e, portanto, “científico” na tradução. É dentro do cristianismo que melhor se compreende o sentido profundo da linguagem da Bíblia; pois não basta traduzir as palavras da Bíblia, mas sentir-lhe o perfume cristão, o perfume que elas foram ganhando ao longo dos séculos, ao passarem pela vida de milhares de milhões de cristãos, no povo de Deus, que foi sempre acompanhado pelo Espírito de Jesus. Isso, sim, é fazer uma tradução cristã, “rigorosa”, da Bíblia. Como disse o Concílio Vaticano II: “A Bíblia deve ser lida com o mesmo espírito com que foi escrita” (Dei Verbum, 12). E se lida, também traduzida.

É igualmente digno de admiração que o tradutor de Coimbra julgue estar a fazer a verdadeira tradução do Novo Testamento, quando afirma: “Porque é que os leitores de língua portuguesa não hão de ter a oportunidade de se confrontarem com o texto real do Novo Testamento? Penso que é o momento de o fazerem” (ib., 39). Isto equivale a dizer que nenhuma tradução portuguesa apresenta o tal “texto real” do Novo Testamento. Ou seja, todos os outros tradutores portugueses do Novo Testamento, até hoje, não apresentaram o tal “texto real”…

4. Alguns conceitos confusos

Lamentar que a versão grega do Antigo Testamento tenha ficado esquecida (ib., p. 39) não retira mérito às traduções que foram feitas a partir da mesma: a Vetus Latina, a Vulgata e tantíssimas outras. É que a Igreja teve sempre um feeling tradutor que a levava ao texto original da Bíblia, que era, e é, o da Bíblia Hebraica e não a Setenta, a não ser nos deuterocanónicos e apócrifos, que são assim chamados por não estarem na Bíblia Hebraica. Portanto, dir-se-ia que a Igreja procedeu bem ao não traduzir a Bíblia dos Setenta, que é já uma tradução, mas foi traduzir dos originais hebraicos existentes.

Dizer igualmente que os judeus aceitaram bem a Bíblia grega, é só meia verdade, pois aconteceu precisamente o contrário, com os judeus da Palestina/Israel: já na época cristã, “inventaram” outras traduções gregas do Antigo Testamento, a fim de desacreditarem a Setenta e os cristãos que a usavam. E isto, por motivos teológicos importantes. Deste modo, apareceram outras traduções gregas dos judeus: a de Áquila, a de Símaco e a de Teodocion. Cabe perguntar aqui: De que Bíblia grega vai ser traduzido o Antigo

Testamento de Frederico Lourenço? Da Setenta ou destas Bíblias gregas do Antigo Testamento? De facto, dizer Bíblia grega, sem mais, é pouco rigoroso.

Neste sentido, não se pode afirmar com tanta convicção que esta tradução da Bíblia é para “leitores de todas as proveniências e convicções” (DN, 18.09.2016).

Em resumo

Ninguém contesta a capacidade do tradutor da língua grega para a língua portuguesa. Pelo contrário, é digno dos melhores elogios, por se meter em tamanha tarefa. Mas pode fazer-se alguns reparos à tradução de uma Bíblia. E porquê? Precisamente porque, como acima se diz, a Bíblia, grega ou hebraica, não é um livro clássico, como outro qualquer. Tem um vocabulário “técnico” próprio, tem a linguagem da fé, situa-se num contexto de fé, pois, como livro de fé, nasceu e cresceu num povo de fé e foi escrita precisamente para transmitir os valores da fé desse povo. Tudo isto porque a Bíblia não é uma obra literária escrita para manifestar apenas os valores literários, estéticos; pois ela é um conjunto de documentos que manifestam as vicissitudes e o conteúdo da fé de um povo e dos seus respetivos valores. É esta compreensão global do texto bíblico que deve funcionar também como critério de tradução.

Enfim, falar da Bíblia não é nada fácil. Traduzi-la ainda é mais difícil. E falar da Bíblia grega dos Setenta também não é para iniciados. É pena que, em alguns textos de apresentação da obra, apareçam algumas imprecisões e meias verdades, que não favorecem a preciosa e importante obra do Professor Frederico Lourenço, a quem endereçamos daqui os nossos parabéns e as nossas saudações bíblicas.

Franciscano capuchinho, professor de Sagrada Escritura na Universidade Católica do Porto, coordenador da nova tradução da Bíblia da Difusora Bíblica (1992-1998), realizou a sua tese de doutoramento sobre “A Bíblia de João Ferreira Annes d’Almeida”