São os valores – os “valores de orientação permanente”, como sempre dizia Jorge Borges de Macedo – que determinam ou deveriam determinar as nossas escolhas ou convicções políticas. Mas a verdade é que, como em outras circunstâncias da vida, a maioria só descobre esses valores pela sua falta, ou melhor, quando, pelas consequências existenciais da sua falta, outros mais baixos valores de desorientação se levantam.
Talvez por isso, em 21 de Março passado, em Subiaco, os deputados do Grupo Conservador e Reformista Europeu tenham lavrado e aprovado a Carta dos Valores Conservadores Europeus. Os redactores e subscritores do documento pretendem resgatar os valores inspirados nos ensinamentos de S. Bento, um dos pais da Europa cristã, vendo nessa ligação à tradição não uma “recusa do progresso” ou um qualquer desejo de regresso à Idade Média, mas “uma preservação de valores de continuidade”.
S. Bento de Núrsia foi o fundador, em 529, em Monte Cassino, da ordem beneditina, que através dos seus mosteiros, espalhados por toda a Europa, associando a oração, o estudo e o trabalho, fez, numa época de grande crise, a ponte civilizacional entre a ordem romana imperial, destruída no século V, e os novos reinos medievais.
Raízes cristãs
Assim, é no cristianismo, ou mais precisamente na convergência das tradições grega, romana e cristã, que o Manifesto dos conservadores europeus radica a identidade da Europa, um acto extremo e revolucionário, ao que parece, embora só muito dificilmente possa enunciar-se uma ideia de “Europa”, qualquer que ela seja, sem a convergência destas três tradições.
Na dita Carta defende-se também a diferença: as identidades históricas e culturais únicas de todos Estados membros e a sua soberania nacional – prerrogativa dos “grandes”, independentemente da retórica –, e a diversidade de pensamento, contra “uma União Europeia entendida como instrumento para a realização de uma agenda globalista virada para impôr o pensamento único progressista e o relativismo ético”. A importância “da fé e da moral na formação de uma sociedade justa” é, depois, sublinhada.
O Manifesto reclama ainda para o pensamento conservador a defesa do “verdadeiro ambientalismo” (o que não vê os seres humanos como inimigos do planeta Terra), fala da crise demográfica do continente europeu e reitera a necessidade de medidas que encorajem a natalidade. No seguimento, refere a “família tradicional”, ameaçada pelas “tentativas de desconstruir as diferenças intrínsecas” e fundacionais entre homem e mulher.
Contra a “imposição de programas ideológicos”, os conservadores e reformistas europeus querem promover “um ambiente que encoraje o pensamento crítico” e um sistema educativo centrado “na qualidade e na meritocracia”. Apontam a perturbação causada por tendências pseudo-científicas “superficiais, divisionistas e efémeras, como o wokismo e a ideologia de género” e, a terminar, reafirmam o ideal da construção “de uma sociedade fundada sobre valores duradouros, que favoreça a estabilidade, a harmonia e o bem-estar de todos os cidadãos”.
Uma declaração de princípios e valores perfeitamente legítima, não fosse o clima de alarme e prevenção que, a dois meses das eleições, invadiu as instâncias superiores da União Europeia e outras entidades públicas e privadas. Vinda de quem vem e contrária aos novos inquestionáveis direitos de uma Europa que vê em deriva individualista, experimentalista, hedonista e decadentista, a declaração tem tudo para ser uma séria candidata ao cancelamento por “desinformação” ou “discurso de ódio” recentemente proposto por Bruxelas para as plataformas sociais.
Não há valores que permaneçam sem que correspondam a uma profunda necessidade humana, a um desejo de comunidade e de continuidade, e sem que se vão adaptando, geração após geração, ao tempo, ao modo e ao lugar. Assim, os valores e princípios defendidos neste Manifesto, mais que o reflexo de um quixotesco desejo de regresso ao passado, devem antes ser vistos como uma retoma de valores e princípios permanentes no abismo criado pela sua ausência.
Um abismo globalista, onde convergem os restos do internacionalismo marxista (curiosamente, morto e enterrado nos seus baluartes russo e chinês e substituído por um nacionalismo agressivo, quase imperial) e o multilateralismo interessado de bilionários corporativos, a quem o corte de laços familiares, comunitários e nacionais favorece. Tudo gente não eleita, gente desenraizada por convicção e interesse, que se propõe impôr ao mundo, de forma subtil, o que acabará por ser um pesadelo distópico, se transformado em realidade.
Direitas e não só
De certo modo, é esta a principal guerra cultural que temos pela frente. O grupo dos Reformistas e Conservadores Europeus é a frente nacional-conservadora desta batalha. O outro polo da resistência nas direitas europeias é o Identidade e Democracia, anteriormente denominado Movimento pela Europa das Nações e das Liberdades, um grupo mais popular ou populista e mais laico ou secularista, cuja origem e expansão estão sobretudo ligadas à questão da imigração descontrolada e aos riscos que representa – para a identidade nacional dos países de acolhimento, para os próprios e para a continuidade dos direitos humanos europeus, velhos ou novos – a não-integração social, cultural e religiosa dos imigrantes.
Mas o que convém não esquecer é que, contrariamente ao que algumas “vanguardas esclarecidas” nos querem fazer crer, os valores europeus a que estas direitas dão voz, estão longe de ser exclusivos de parlamentares “extremistas” – e mais longe ainda de serem minoritários.
“Não passarão!”
O livro Identidade e Família, uma obra plural, reunindo textos analíticos, jurídicos ou literários assinados por duas dezenas de autores católicos, do centro-esquerda à direita conservadora, foi tratado pela Esquerda doméstica e por uma comunicação social ávida de alarme e de audiências, como uma defesa da família tradicional radical, homofóbica e perigosa para a democracia e para a comunidade. A apresentação de Pedro Passos Coelho, o “normalizador da extrema-direita”, de um livro que veiculava valores contrários aos de um suposto novo consenso contribuiu para o delírio jornalístico e comentativo. Os autores, independentemente do que tivessem escrito, foram logo apelidados em bloco de perigosos reaccionários, populistas e fascistas. E nem faltou uma folclórica manifestação estilo “Não passarão!” à porta da Bucholz.