A ideia dos pais-fundadores da Europa, ou melhor, da União Europeia – já que a Europa, como Cristandade, Respublica Christiana, ou concerto das “nações civilizadas”, de Vestefália a Viena, começou muito mais cedo – resultou da quebra que representaram as duas “guerras civis” europeias do século XX: a Grande Guerra e a Segunda Guerra Mundial. Com elas acabou o mundo eurocêntrico e o “Direito Público Europeu”. Por isso, no pós-guerra, num tempo de reconstrução política e económica, franceses, alemães, italianos, traumatizados pelo que tinham vivido e contemplado, quiseram juntar esforços para que não se repetisse a tragédia.
A grande maioria destes “pais fundadores” – Robert Schumann, Jean Monnet, Konrad Adenauer, Alcide de Gasperi – eram católicos de convicção e prática e queriam a paz pelo comércio e pela prosperidade. O eixo franco-alemão foi também decisivo para unir a Europa Ocidental nos valores da liberdade económica e política, de expressão, de credo e de ideologia, já que, depois da guerra, a Cortina de Ferro, trazida pelas tropas soviéticas na sua marcha sobre Berlim, descera sobre o Centro-Leste do Continente, com os países e os povos que ficavam para lá do Elba submetidos a Moscovo e ao comunismo por partidos e ditadores interpostos.
Hoje, por razões diferentes, muitos europeus – à semelhança dos fundadores da Europa e dos povos e dirigentes dos países do Leste Europeu que, depois do fim da União Soviética e da libertação, entre 1989-1991, recuperaram a sua independência – estão longe, muito longe, da deriva pós-moderna dos “novos direitos humanos” que algumas instituições e dirigentes políticos da União Europeia querem apresentar como “valores europeus”.
Quem propõe estes novos valores e “direitos”? Que grau de adesão têm? Quem mandatou os deputados e os burocratas de uma União que é essencialmente económica para acrescentarem à Carta novos “direitos fundamentais”, muitas vezes contrários a outros direitos verdadeiramente fundamentais e à Ciência, ao senso comum e às crenças de grande parte dos europeus? Quem os indigitou para lavrarem recomendações de bom e correcto comportamento político e ideológico e fazer depender do seu cumprimento a atribuição de subsídios ou a aplicação de sanções? Que “valores europeus” são estes, que agora nos propõem – ou, até, que nos impõem –, geralmente ao sabor da influência dos grupos e dos lobbies mais “activistas”?
Os valores pré-cristãos
Há valores europeus com muitos séculos ou, mais precisamente, com cerca de três milénios. Uma leitura dos poemas homéricos, do teatro grego, da Eneida de Virgílio, das Histórias e dos Anaisde Tácito, traz a dimensão desses valores no tempo pré-cristão: são valores e ideais ligados à liberdade dos heróis, condicionada pela ética do grupo, da comunidade, do respeito pela cidade, pela tribo, pela família – e pelos deuses, enquanto símbolos, mediadores ou intérpretes de uma vontade ou de um poder superior.
Ulisses, homem de muitos ofícios e talentos, é um modelo desses valores. A começar pela liberdade: Calipso oferece-lhe a imortalidade e a “perfeição”, e Ulisses recusa-as, pois quer voltar para Penélope e para Ítaca, para a sua mulher, para a sua família, para a sua terra, para o seu reino. Ulisses é astuto, mas também é corajoso; tem senso comum, mas nunca treme; é generoso, mas castiga impiedosamente os pretendentes de Penélope; é, enfim, um homem em cuja natureza coexistem e lutam o bem e o mal.
Onde estão os valores dos poemas homéricos? Estão nessa liberdade dos heróis e dos deuses, na relação com a Terra e com o Céu – com homens, mulheres, deuses e deusas na ancestralidade e na intermediação. A beleza e a força física também são importantes, tal como o realismo, a aceitação da imperfeição e a astúcia para a ir navegando e superando. A fidelidade, a fidelidade engenhosa, simbolizada por Penélope na sua interminável teia, é outro dos grandes valores do texto clássico. Há liberdade e criatividade dentro da lealdade, do sacrifício na defesa da pátria e da família.
Heitor, bem mais que o leviano Paris, é, com Aquiles, o herói da Ilíada. Herói temerário que, ousadamente, enfrenta um Aquiles ofendido por Agamémnon e destroçado com a morte de Pátroclo.
A tragédia não está longe destes valores. Para von Wilamowitz-Möllendorff, um filólogo alemão da transição do século XIX para o século XX, a “tragédia ática” é uma emanação da “lenda heróica”, em volta de dois elementos-chave – a escolha e o sofrimento. A viagem através do sofrimento, que precede o mistério cristão do sofrimento de Cristo-Deus e se opõe às correntes epicuristas e às evasões platónicas, descreve, problematiza e detalha o dilema trágico e o sofrimento que uma escolha coerente pode implicar.
Há uma interrogação sobre a natureza humana no heroísmo épico da “escolha de Aquiles”, na luta que o levará a uma morte nobre e certa; e há também uma interrogação sobre o mistério do sofrimento humano perante o mundo poderoso e impiedoso a que os protagonistas se submetem.
A hybris pode levar um homem, um herói, um semideus, a desafiar os outros homens, e a desafiar o mundo, os deuses e as circunstâncias, no limite da razão. Heitor agiu assim quando, contra o conselho de Polidamos, decidiu enfrentar em campo aberto um Aquiles furioso. Acabou mal o filho de Príamo, e o seu cadáver foi arrastado pelo carro de cavalos do vencedor, perante a viúva, Andrómaca, que tudo vê de cima das muralhas de Troia, sofrendo a dor extrema da humilhação e da derrota do amado.
O teatro, toda a tragédia grega, da Antígona de Sófocles às Tebanas de Eurípedes, vai contar os dilemas e as alternativas diabólicas de todas estas histórias que, em Homero, nos são dadas pelo lado mais épico, mais solar. No teatro, é mais o sofrimento que Nietzsche censuraria em Eurípedes como sinal pré-cristão, nas “origens da Tragédia”; um sofrimento que é, no entanto, parte integrante dos valores da Europa, no risco assumido de pagar o preço dos princípios, mesmo quando a causa parece perdida.
Há também medida, sentido de equilíbrio, sentido de justiça nestas narrativas e nas que se vão seguir em Roma e no Império Romano. A Eneida sofre a influência dos poemas homéricos, mas inverte-lhes a ordem: os seis cantos da Primeira Parte inspiram-se na Odisseia e narram a viagem de Eneias pelo Mediterrâneo na fuga de Troia: o encontro com Dido, rainha de Cartago, a paixão incurável e o suicídio da rainha, inconsolável perante o abandono do troiano. A segunda parte segue a Ilíada, ao contar os combates dos troianos no Lácio.
No canto IV, Virgílio, pela boca de Anquises, pai de Eneias, dirige um conselho a Augusto, o príncipe da Paz que trouxe a Roma o fim das guerras civis: Tu regere imperio populos, Romane, memento (Hae tibi erunt artes), pacique imponere morem, Parcere subjectis et debellare superbos (“E tu, Romano, cuida de reger os povos sob o teu Império/ As tuas artes serão impôr a paz, poupar os submissos e abaixar os soberbos”)
Cristãos e europeus
Alguns destes conselhos sobre o bom governo vão ser absorvidos pelo Cristianismo que, a partir de Constantino, se impõe. Neste primeiro Cristianismo, dominam os ensinamentos paulinos da Epístola aos Romanos, que, salvaguardando a autoridade suprema de Deus, de quem procede todo o poder sobre os reis e príncipes deste mundo, exorta os cristãos a respeitar e a obedecer às autoridades instituídas. Mas se a autoridade política é necessária, a resistência às leis e ordens iníquas é também imperativa – pelo preço do martírio, se preciso for. Há, pois, a aceitação do Estado, da sua necessidade, da sua legitimidade, mas dentro de um espírito crítico e combativo de fidelidade a mais altos valores.
Vai ser esta a dualidade dos valores cristãos europeus, numa unidade espiritual e territorial depois interrompida, no século XVI, pela Reforma luterana e pelos seus seguidores na Inglaterra dos Tudor e entre os reis escandinavos.
A partir de Vestefália, estes valores terão uma expressão laica – o concerto europeu das “nações civilizadas”, com regras na paz e na guerra, regras de reconhecimento mútuo das nações como parceiras legítimas no concerto das potências, de onde resultarão convenções escritas e consuetudinárias. Tudo isto formará, no seu conjunto, aquilo a que Carl Schmitt chamará o Jus Publicum Europaeum, um direito que teve a sua maior glória na regulação da guerra, pondo em questão o conceito de “guerra justa” a partir da “causa”, ao considerar que a legitimidade estava na legitimidade do sujeito protagonista, que era o sistema interestatal que seleccionava os protagonistas da guerra: os Estados soberanos assim reconhecidos pelos outros Estados, actuando em nome dos seus interesses nacionais e geopolíticos. A introdução de uma medida realista das causas e das condições da guerra, impondo regras à inimizade radical dos combatentes, foi uma importante conquista da civilização europeia.
A ruptura
A Grande Guerra e a preocupação de a transformar numa “boa guerra” ou numa “guerra justa” acabou com este equilíbrio. Os nascentes serviços de informação e propaganda dos Aliados, para cativarem e mobilizarem combatentes e povos, pintaram os alemães como “criminosos de guerra”, os únicos “criminosos de guerra”, os “hunos maus”, que decepavam as mãos das crianças belgas. Uma lenda negra, como se provou no fim das hostilidades. Com a Grande Guerra de 14-18 e o seu segundo episódio em 39-45, acabou o Direito Público Europeu e os valores comuns, alguns dos quais a Europa Unida iria querer depois recuperar por via comercial ou económica.
No entanto, a acreditar na retórica do Conselho Europeu sobre os “novos direitos humanos”, esses milenares valores, perdidos e resgatados – o heroísmo, o realismo, o respeito pela transcendência, pela vida e pela morte, pelo corpo e pelo espírito, a liberdade, a defesa da pátria e da família, o sentido de justiça e de fidelidade aos princípios e aos compromissos –, estão em vias de ser substituídos por uma nova ordem de valores; valores como que decorrentes dos primeiros mas que, na realidade, se lhes opõem frontalmente; valores inspirados no hedonismo e epicurismo pós-modernos, no experimentalismo temerário e voluntarista e na cultura do cancelamento.
Ou é, pelo menos, este o espírito com que muitas instituições europeias acolhem com atenta e respeitosa veneração as mais obtusas inovações, como a “linguagem epicena”, destinada a anular o “binarismo de género”, ou seja, a fazer com que a linguagem reflicta a “natural indiferenciação sexual” dos seres humanos e induza a sua libertação da “tirania da biologia”.
A socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí, especialista em Desigualdade de Género e Crítica Feminista Pós-colonial, veio recentemente defender que os Iorubás, da Nigéria, só tinham passado a distinguir os homens das mulheres, como grupos diferenciados, com a colonização ocidental. E o que deveria então o Ocidente fazer? Mostrar arrependimento e devolver os Iorubás aos tempos pré-coloniais, confirmando-os na sua sabedoria e nas suas crenças iniciais? Evangelizar depois o resto do mundo, em jeito de penitência, na nova fé da indiferenciação de que os Iorubás tinham sido pioneiros? Talvez. De resto, a agenda de alguns grupos de activistas com franco acesso às instituições europeias não parece andar muito longe de semelhantes programas expiatórios ou de acção e legislação avançada.
A civilização do mal-estar
No século XVIII, alguns iluminados europeus, como Montesquieu, Voltaire e Rousseau, procuraram criticar a civilização europeia e os seus valores, contrastando-os com os valores dos persas, dos chineses e dos “bons selvagens” ameríndios. Freud chamou depois a este olhar depreciativo sobre si mesmo e admirativo sobre o outro longínquo “o mal-estar na civilização”. E perante semelhante olhar míope tudo ou quase tudo tendia a tornar-se invisível ou irrelevante – como o facto de, na Pérsia, os cristãos serem perseguidos e massacrados, ou de, na China do século XVIII, reinar um muito pouco paradisíaco despotismo imperial, ou de os “bons selvagens” rousseauneanos serem antropófagos.
Mais tarde, os pós-marxistas do Maio de 68, na senda de Sade, e depois os desconstruccionistas franceses, colonizaram o campus americano. Um campus que os vem repetindo à exaustão e com fanáticas e puritanas diferenças, herdando a sanha de todas as cegas fés, agora em versão anticristã e “anticivilizacional”. O resultado é o neo-marxismo reformado que hoje substituiu as causas da justiça, da igualdade, do trabalho, por uma utopia ultra liberal, hedonista, decadentista que serve e se serve do hipercapitalismo global e que, perante a inconsciência e a inércia de muitos europeus, vai inscrevendo nos anais da União Europeia pseudo-direitos cada vez mais distantes dos valores pagãos, cristãos, universais e nacionais que fizeram a grandeza da Europa.