Há pouco mais de um ano escrevia, a propósito de outros atores, que, entre nós, estava em voga a “magistratura do espetáculo”, ao gosto popular, para consumo das massas. Neste tipo de “magistratura”, a única Justiça que interessa é que se faz na opinião pública, cujas condenações são inexoráveis, através de um julgamento rápido e com pouco ou nenhum contraditório. Procura-se incessantemente a parangona do jornal ou o oráculo do canal de notícias, quanto mais humilhante, comprometedor e sensacionalista melhor.
Um bom exemplo dos expedientes utilizados por estes “justiceiros do povo” viu-se, há poucas semanas, com a libertação de Duarte Lima seguida da sua nova detenção, ainda à porta do estabelecimento prisional e na conveniente presença da comunicação social que tudo registou. Claro que a notícia de que Lima foi novamente restituído à liberdade pouco tempo depois não teve uma fracção do impacto que a primeira história mereceu. Todos estes movimentos, por certo espectaculares, dão a aparência de que os órgãos da justiça estão a funcionar a todo o gás, mas resta saber se não se trata apenas disso mesmo: simples aparência.
Na verdade, a interpretação que faço do recrudescimento do fenómeno da “magistratura do espetáculo” prende-se, justamente, com a tentativa de os órgãos de administração da justiça mascararem as dificuldades que todos os dias enfrentam com a narrativa pública de que o sistema é implacável, impiedoso e eficaz, principalmente quando estão em causa processos mediáticos e arguidos tidos por influentes e poderosos. Todavia, essa percepção tem geralmente muito pouca correspondência com a realidade. Basta pensarmos nos processos e destino de João Rendeiro para chegarmos à mesma conclusão.
Cola bem ao estilo deste “populismo penal” a produção de certas afirmações bombásticas, que, de um golpe, prendem a atenção das massas e pretensamente encapsulam o estado do nosso sistema judicial. Foi precisamente o que aconteceu com Luís Neves, Director da Polícia Judiciária, que, não sendo um magistrado, demonstrou numa recente entrevista à Rádio Observador que é digno representante de todos os males da “magistratura do espetáculo”, da qual infelizmente também fazem parte os órgãos de polícia criminal.
As queixas e explicações do Director da PJ para o estado do sistema de justiça foram várias, mas todas girando em torno dos suspeitos do costume, tocando nos clichés a que já nos habituámos: os atrasos da justiça devem-se, por um lado, aos advogados terroristas que usam os recursos como expedientes dilatórios para obstar à administração da justiça e, por outro lado, à sacrossanta míngua de meios nas polícias e no MP; a ineficácia das investigações, que muitas vezes estão na origem de acusações em que os indícios não são suficientes para suster uma condenação, só se pode ficar a dever ao Tribunal de Justiça da União Europeia e à (péssima) interpretação à la lettre que este faz dos direitos fundamentais dos cidadãos, obstando a que a investigação criminal aceda a dados indiscriminadamente armazenados pelas operadores de comunicações sobre tudo e todos.
No fundo, o programa para a Justiça penal do Director da PJ é bastante simples e resume-se assim: mais meios para as polícias e Ministério Público e menos garantias para os arguidos. É lamentável, Sr. Director… É lamentável que se pronuncie publicamente nos termos em que o fez, manifestamente desprimorosos e até insultuosos para toda uma classe profissional (os advogados) que respeita e aprecia o trabalho da PJ e que, só por isso, merece de volta semelhante respeito e apreciação. É lamentável que o faça quando, ao que parece, até é advogado com inscrição suspensa na nossa Ordem, e, por isso, um Ilustre Colega que deve urbanidade aos demais, não podendo deontologicamente desprestigiar o exercício da advocacia.
Mais grave do que a forma é, porém, a substância: é continuar sem se compreender as consequências que esta tendência para a espetacularidade tem para o Estado de Direito e para a confiança dos cidadãos na Justiça. É continuar a apostar-se numa estratégia de divisão entre aqueles que servem a administração da justiça, criando-se fossos e ódios entre magistrados, polícias e advogados, em que invariavelmente os últimos passam por vilões e os primeiros por mártires de uma causa que, afinal, é de uns e de outros.
É natural e legítimo que os órgãos de polícia criminal, o Ministério Público e os tribunais reclamem por mais meios (quando, como se tem visto, por vezes nem papel têm para trabalhar), mas é já para mim incompreensível que, a par desse anseio, vociferem publicamente contra um excesso de garantias dos arguidos que, bem espremidas as coisas, não existe. O chavão de uma justiça para pobres e outra para ricos, paga a peso de ouro em honorários, não é mais do que o reconhecimento implícito de que o Estado não remunera decentemente os advogados de que depende para que se defendam os cidadãos com menos recursos económicos.
Os direitos e as garantias dos arguidos no processo penal são e serão sempre proporcionais à confiança que a comunidade pode depositar nas decisões dos tribunais; quanto mais forem as garantias, mais escrutinada e mais justa será a decisão. Meios e garantias são duas faces de uma só moeda: ambos permitem, em espectros diferentes, a boa decisão da causa e a descoberta da verdade material. Os meios trazem rapidez; as garantias confiança e qualidade.
As declarações de Luís Neves sobre estes temas são preocupantes e envergonham a nobre instituição que representa.
Resta-me a esperança de que o Director da PJ nunca seja constituído arguido e se veja obrigado a recorrer a um “terrorista judiciário” que o defenda com determinação, escrutinando, sem cedências, o cumprimento da lei a que as forças de segurança, o MP e os tribunais estão obrigados.
Até lá, parece-me que Luís Neve deve vários pedidos de desculpa: enquanto Director da PJ, aos seus subordinados; enquanto advogado, aos seus Colegas; enquanto titular de um cargo público de elevada responsabilidade, a todos os cidadãos.