Todas as obras de arte nascem de um impulso original, de um estímulo profético e arrebatado. Essa pulsão adventícia — essa palpitação, como escreveu Nabokov um dia — não se desvenda nem se repete, não se molda nem se transforma. Tão-pouco se observa ou examina. Simplesmente, existe. Furtiva, desponta em alvores e madrugadas, evaporando-se no instante da criação como chuva tropical em terra quente.

A criatividade é um cofre sem chave nem senha, um país nunca desenhado no mapa-mundo, uma estrela retirada do espaço sideral. Não tem horário de expediente nem fila de espera. Não se anuncia em prospectos coloridos nem se representa em telas ou diagramas. E não, não está disponível na Internet. Talvez por isso Haruki Murakami, que infunde em cada livro a mais depurada ficção, refira tratar-se de uma «caixa negra» à qual não acede conscientemente. Em Romancista como Vocação, o escritor japonês alude inclusive a um período de silêncio, de gestação, em que cultiva dentro de si o embrião do livro, como se assim evitasse a exposição dos pensamentos à letal oxidação solar.

Como ilustra Gonçalo M. Tavares em Breves Notas sobre o Oriente: «O artista é também um contemplador, um distraído, um cego que tem de ser ajudado a atravessar a rua, não porque fisicamente não veja, mas porque está a olhar, algures, lá para cima.»

Foi precisamente nessa cidade imaginária, habitada por contempladores, distraídos e diletantes, que Paul McCartney acordou, numa manhã de 1965, com uma pletora de notas obstinadas à flor da pele, vagamente embutidas na fronteira entre o sonho e a lucidez, ou quiçá entre o passado e a eternidade. Com o espanto e a desconfiança do viandante que depara com terras bravias e nunca trilhadas, sentou-se ao piano estrategicamente situado à ilharga da cama e da única janela do quarto. Tacteou-o até encontrar a melodia, que se colou às mãos. Percorreu-a do início ao fim, como se ainda não houvesse acordado, ou como se alguém lha ditasse, compasso a compasso, do outro lado da consciência. A surpresa era tanta, que julgou ser uma canção de Cole Porter ou Fred Astaire, o que o levou a perguntar, mais tarde, a John Lennon e ao produtor George Martin se alguma vez a tinham ouvido. Para sua fortuna, ambos lhe atiraram um afervorado «não».

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Faltava somente a letra. A princípio, usara expressões dispersas, desgarradas, sem nenhum sentido, como «scrambled eggs» e «oh, my baby, how I love your legs». Quem poderá censurá-lo? A melancolia insuflada pelo sonho demandava, porém, algo mais profundo: uma confidência, uma revelação. Repentinos como sentimentos, os versos surdiram, pouco depois, numas férias em Portugal, quando já haviam começado as gravações do novo álbum: Help.

Na viagem de Lisboa a Albufeira, imerso entre a narrativa cinética da paisagem e a álgida mudez de uma folha em branco, Paul McCartney materializou o sonho: «Yesterday, all my troubles seemed so far away / Now it looks as though they’re here to stay / Oh, I believe in yesterday».

O tom elegíaco e irresoluto das palavras evocava, porventura, a sua mãe, que perdera havia anos. Nem o próprio tem certezas sobre a origem do sopro, embora hoje admita estar essa separação ingente, irreparável, na génese do tema, metamorfose da saudade ou simplesmente catarse e reconciliação: «Suddenly, I’m not half the man I used to be / There’s a shadow hanging over me / Oh, yesterday came suddenly / Why she had to go I don’t know, she wouldn’t say / I said something wrong, now I long for yesterday».

Em Abbey Road, entregou-se à solidão do estúdio com a guitarra. Afinou-a um tom abaixo. A música nascera em sol, mas soava melhor em fá. A alteração permitia-lhe manter a geometria dos acordes. George, John e Ringo haviam decidido não tocar. O produtor George Martin sugeriu, todavia, um quarteto de cordas, com arranjos inspirados em Bach. Um tudo-nada relutante, por temer os vibratos dos violinos, Paul McCartney aceitou a ideia e contribuiu até com algumas notas.

Os sonhos voltariam, e a sua mãe também. Em noites anuviadas, quando a tristeza e a desesperança assolavam subitamente, Mary permanecia ao seu lado como feixe de luz que a madrugada não é capaz de sorver. E nas horas mais sombrias e brumosas, no silêncio descontinuado do rumorejar, um conselho sábio, um sussurro terno, a resposta certa: «let it be, let it be».

Outros compositores relataram experiências similares. Berlioz sonhou ter composto uma sinfonia cujo primeiro andamento, um allegro em lá menor, lhe assomou vividamente à lembrança ao amanhecer. A abertura orquestral da ópera O Ouro do Reno, cativa no subconsciente de Wagner desde muito tempo, revelou-se numa tarde de insuperável indolência, consequência de uma noite febril e insone. Entre o torpor e a alucinação, o alemão mergulhou numa forte corrente de água, vinda do seu interior, cujo som se transformava magicamente em notas musicais. Ravel admitiu irromperem em sonhos as suas mais belas melodias. Também Brahms, Chopin, Händel e Mozart se alentaram nessa terra luminosa em que nenhum som é efémero.

Já Stravinsky foi acometido de uma imagem tão intensa como fatal: um ritual pagão em que uma jovem dança até à morte, para serenar os deuses. Desse cenário sacrificial, sem matizes nem perdão, nasceu A Sagração da Primavera, destinada a modificar uma estética secular e a combater a platitude com uma harmonia subversiva e anárquica, inundada de pulsões dissonantes e atonais. No limiar do bailado, em Augúrios Primaveris: Dança das Adolescentes, reminiscência cristalina do sonho, estrondeiam trovões carregados de tragédia, presságio místico de um epílogo anunciado. Interpretada pelos Bailados Russos, a obra estreou-se em Paris, no Teatro dos Campos Elísios, em 1913, causando tumulto e escândalo. Perante os insistentes protestos do público, rajadas de vento em noite estrelada, o russo abandonou a sala, sob o olhar de Debussy, Picasso, Proust, Ravel e Gertrude Stein. Sabemos hoje: tudo começou num sonho.

Nos sonhos, quase tudo se altera: a personalidade, a linguagem, a visão. A música é, contudo, imune às oscilações soniais: não é encriptada nem se decompõe. Como ensina o canadiano Irving J. Massey, em The musical dream revisited: music and language in dreams, a música dos sonhos não cede ao caos onírico: é igual à que ouvimos acordados. A explicação talvez ajude a dessacralizar os milagres de Berlioz, Wagner, Ravel e Stravinsky, e ainda os instantes sobrenaturais de Paul McCartney, que continua a sonhar e a unir os dois mundos.

O músico de Liverpool confessa serem as suas noites assaltadas por outro sonho. Durante um concerto, o público começa a sair. Ainda em palco, transformado repentinamente em corda de funambulista, procura o tema perfeito para demover os melómanos. O cenário é tão ominoso como aviltante, e não faltariam decerto alvitres de canções nem promessas de amor eterno. Não será necessário: Paul McCartney jamais terá de clamar «Help me if you can, I’m feeling down». O pesadelo acolhe, todavia, a certeza de que a música nunca adormece na sua estrada infinita e sinuosa: um impulso órfico está sempre prestes a despontar.

Leonard Bernstein aludiu, certo dia, a uma profusão de singularidades técnicas que contribuíram para o êxito e glória de Paul, John, Ringo e George: a métrica irregular de She Said She Said, o cânone de Good Day Sunshine, a melodia exuberante, digna de Schumann, de Got To Get You Into My Life, os falsetes de She Loves You, o trompete bachiano de Penny Lane, o quarteto de cordas que dialoga em Eleanor Rigby, as guitarras que transbordam em I Saw Her Standing There, a influência de ragas hindus em Within You Without You.

A imortalidade ancora, porém, no desassombro criativo, na alquimia descontrolada, na intensa roda-viva de palavras forjadas num lugar magicamente situado entre a ilusão a realidade. Nessa terra misteriosa, dirigida por um homem sem pátria nem passado, onde um sonhador vê o horizonte fulvo rodopiar na montanha ao fim da tarde, há flores de celofane, submarinos iridescentes, rios com sombras de tangerineiras e céus de geleia cravejados de diamantes.

Nela, é mais feliz quem vive de olhos fechados, porque a música, quando soa, atira directamente ao coração.