Do meu lugar cativo no Estádio da Luz, num sentimento entre a raiva, a tristeza e a depressão, vejo o impensável: uma história repetida.
Zaidu a fazer de Hulk, Luís Godinho a guardar a taça, o F.C. Porto a fazer a festa na minha casa.
Pior: no meio de tudo isto, já só sobram bancadas meio despidas, uma equipa que nunca se encheu de orgulho e brio suficientes para impedir o desastre, um Presidente e uma Direcção escondidos e humilhados pela ironia pouco subtil de Pinto da Costa. Com uma mudança apenas ligeira de actores, a História repetiu-se.
Não poderia ser de outra forma. Afinal, Luís Filipe Vieira chegou à presidência do Sport Lisboa e Benfica em Outubro de 2003. Vinte anos volvidos, da lenda do Benfica resta apenas uma ténue sombra.
Como foi isto possível? Este final de tarde, clímax da longa noite benfiquista, explica tudo.
Ouvi, no rádio do carro, os onze jogadores encarnados, e recordei esses ontens que cantavam, nos quais Luís Filipe Vieira anunciava entulho a preço de ouro e pregava amanhãs risonhos a todos os adeptos, ainda hoje iludidos pelo revestimento dourado.
Depois da já ritual caminhada até à Catedral, vi a Fun Zone, actual porta de entrada no recinto. Assim mudou o benfiquismo, pela mão dos seus dirigentes das últimas duas décadas: antes um furor visceral, emanado das mais profundas raízes de um povo, é agora um produto para as redes sociais, uma experiência, um momento para gravar no telemóvel para a posteridade.
O novo betão, fiel escudeiro de Luís Filipe Vieira, enterrou, sob os escombros do Antigo Estádio da Luz, o benfiquismo puro, urgente, exigente.
Esta mudança, prevista e desejada, talvez tenha produzido uma massa adepta recheada de yes men e repleta de bons sentimentos, mas extinguiu o pensamento crítico que fez do Benfica o maior clube do mundo; arrasou a insaciável fome de vitória dos sócios, força motriz de tantas conquistas; e substituiu o nosso popular orgulho, a nossa fome de vencer, a nossa paixão por uma sensação de naturalidade, na hora da derrota e de sã convivência com o falhanço.
Por isso, não espanta que num jogo onde, mais do que uma importante vitória, estava em causa uma certa sensação de dignidade, as bancadas não estivessem cheias, nem em efervescência, nem exigindo, no final, explicações à Direcção e aos jogadores.
O cliente compra, mas não grita; consome, mas não se deixa consumir; sorri, mas não ama. Afinal, a produção em cadeia daqueles leva, evidentemente, ao desaparecimento do sócio militante, fiel e assíduo na vida do clube.
Ainda no decorrer do jogo, pude observar o quão manifestamente curto é o plantel do Benfica. Não tinha de ser assim, mas a insistência em negócios pouco transparentes, a preferência pelas comissões em detrimento da qualidade, e os pactos feitos em benefício de uns poucos e contra os interesses do Sport Lisboa e Benfica isso ditaram. Desde Outubro de 2003 que estas suspeitas existiam; com o avolumar dos anos, foram-se tornando factos com provas cada vez mais concludentes. No entanto, mandato após mandato, eleição após eleição, os sócios do Benfica foram sancionado o comportamento de virtude questionável dos seus dirigentes.
Vinte anos volvidos, noventa minutos decorridos, terminou a partida.
No final, observando a festa dos jogadores e adeptos portistas, assimilei mais um falhanço, recordei também o campo inclinado durante todo o jogo, revivi o respeito que os rivais não nos têm.
Para todas as quedas, os dirigentes e sócios do clube foram encontrando desculpas e explicações. Ontem, a pandemia; hoje, o árbitro; amanhã, a ausência do jogador X ou a necessidade de adaptação do treinador Y. Na verdade, este é um padrão que se verifica com várias modalidades, que se acentuou nos últimos anos e que nos deveria levar a um olhar para dentro.
O Benfica não é respeitado porque não se dá ao respeito; e não se dá ao respeito porque não há quem o defenda. Este é o ponto crucial: os sócios perpetuaram no poder, em 2020 e 2021, uma classe de dirigentes que não tem condições para defender o bom nome do Sport Lisboa e Benfica. Comprometidos com o anterior Presidente, o seu interesse reside em salvaguardarem-se, ao invés de cumprirem as funções para as quais foram eleitos.
Encantados com a bonita história do jogador feito líder, a larga maioria dos eleitores benfiquistas optou por legitimar Rui Costa, o Vice-Presidente de Luís Filipe Vieira. Ora, Rui Costa não quis limpar a sua Direcção, não desejou um novo começo para o Benfica e, tanto quanto sabemos, não pensou sequer uma revolução para o clube. Pelo contrário, manteve tudo tal como se encontrava. Rui Costa não é livre para decidir nem para criticar, não é suficientemente sagaz para encontrar novas soluções – como, aliás, não o foi para detectar os crimes de mercearia do seu antecessor – e não tem coragem bastante para enfrentar o status quo.
Rui Costa e a sua equipa, por amor ao Benfica, não se deveriam ter apresentado a eleições já que, depois de vermos um Presidente detido, necessitávamos de homens livres. Pelo contrário, mantivemos em funções dirigentes manietados pelos seus rabos de palha.
É por estas razões que, embora possamos ocasionalmente vencer e fazer a festa, isso não mudará o facto de termos em mãos um problema estrutural, não circunstancial; não agudo e de curta duração, mas que se tem revelado crónico e progressivo.
Eu vi o golo do Zaidu, a festa portista, o vergonhoso conformismo encarnado, as mesmas desculpas repetidas à exaustão, a nossa falta de brio e orgulho. Vi, em todo oocorrido, a nossa baça vergonha, a falta de Benfica no Benfica. Vinte anos depois desse fatídico Outubro de 2003, uma década volvida de um escabroso desligar de luzes, dias depois do golo do título, continuo a sonhar com o regresso desse Sport Lisboa e Benfica, grande dentro e fora de campo, pujante em Portugal, brilhante na Europa e valoroso na sua própria defesa.
A realidade, no entanto, fria e crua, é que não estamos a mudar de rumo, nem mostramos vontade de dar passos nesse sentido. A realidade grita-nos apenas que não mudar é condenar o Benfica à sua morte espiritual e desportiva; que persistir nos mesmos erros e nos mesmos actores é garantia de derrota; e que, assim sendo, teremos mais vinte anos disto, desta noite negra e desta tríade fatal: derrotas desportivas, decadência moral, um Benfica de rastos.
No entanto, move-me o amor ao Benfica e, portanto, permito-me sonhar.
Sonho com a noite em que os sócios se libertem e digam “Basta!”. Sonho com o Sport Lisboa e Benfica solto das amarras dos seus obscuros dirigentes, respeitado e dado ao respeito, lutador incansável no agigantar da sua lenda.
Sonho com a tarde em que o nosso orgulho ferido não permita mais complacências com quem nos quer mal, nem nos faça trocar abraços e cumplicidades com quem nos destratou.
Sonho com o dia em que os sócios recuperem a sua exigência e o seu fervor telúrico e que amem comigo este sonho.
Em todas as noites desta nossa noite escura, sonho com um clube probo, brioso, livre, orgulhoso – o Mítico, Lendário e Glorioso Sport Lisboa e Benfica.