Título: José Brandão, Designer. Cultura e prática do design gráfico
Autores: Aurelindo Jaime Ceia e outros
Editora: Fundação Calouste Gulbenkian
Páginas: 405
Preço: 33,33 €
Dando provas de uma originalidade capaz de levantar o sobrolho aos melhores ilustradores da nossa actualidade, José Brandão (nascido em 1944) regressou duma prestigiada escola de design londrina para marcar os anos 1970 portugueses com capas de livros e discos ou cartazes, eles próprios determinantes da década. Refiro-me a Os Passos em Volta de Herberto Helder (1970), O Triunfo dos Porcos de George Orwell (1976), Por este Rio Acima de Fausto (1982), Coro dos Tribunais de José Afonso (1975), Pano-Cru de Sérgio Godinho (1978), e do festival de cinema da Figueira da Foz de 1978. Foi assim o início duma longa e singular carreira, que este livro de 400 páginas agora regista, comenta e elogia.
Publicado pela mesma Fundação Calouste Gulbenkian que lhe concedera uma bolsa para estar em Londres de 1967 a 1970, e à qual prestou depois serviços relevantes, o livro tem coordenação de A. Jaime Ceia, mas foi construído pela mão mais ou menos invisível do próprio José Brandão, que confiou a concepção gráfica à sua principal discípula e colaboradora, Teresa Olazabal Cabral, e assina uma página final de agradecimentos a colaboradores «e a todos os clientes e amigos». O «egocentrismo» da publicação — aceitável num «livro-testamento» como este — é ainda reforçado pelo facto, inesperado numa obra de crítica, que ele também é, de o prefácio ser assinado por Jorge Sampaio, um amigo de longa data que enquanto presidente da república o distinguiu como grande oficial da Ordem do Infante D. Henrique, mas nada disso enfraquece a relevância do livro, em que sobressaem os ensaios dos jovens professores e historiadores de design José Bártolo e Mário Moura, protagonistas centrais da actual tentativa de credibilização e problematização do trabalho e da função dos designers.
A idêntico propósito dedicou, de resto, José Brandão não poucas energias ao longo de décadas enquanto fundador da associação portuguesa dos mesmos e professor, tornando-se sem dúvida uma figura central da história do design gráfico português (desenhou até, em 2003, a série de selos postais «Design em Portugal»…). Como o livro explicita claramente, até em depoimentos dos próprios, o designer-professor atraiu ao seu ateliê B2 alguns dos seus melhores alunos na Escola de Belas-Artes ou na Faculdade de Arquitectura, com eles co-assinando um elevado número dos muitos trabalhos que lhe foi dado realizar. Essa partilha coincidiu com uma época propícia ao laboratório contínuo que o trabalho criativo de design afinal é, a da introdução do desktop publishing, que veio permitir que os olhos de vários criadores associados avaliassem num único ecrã as progressivas aproximações ao resultado final dum produto, melhorando-o exponencialmente. A essa imensa revolução de tecnologia e métodos de trabalho somaram-se duas circunstâncias inesperadas e benfazejas: um tempo de vacas gordas para museus e novas instituições culturais, como a Comissão dos Descobrimentos Portugueses (1986-2002), e o transbordar consequente de uma enorme cornucópia de admiráveis fundos patrimoniais, até então praticamente ocultos, e que pediam exposição e publicação gráfica amadurecidas para que se deixasse para trás, de uma vez por todas, a desgraça visual que haviam sido as edições da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura (1983).
José Brandão foi particularmente decisivo nessa renovação essencial, colhendo os ensinamentos de Sebastião Rodrigues (descendente virtuoso da «geração SPN», a que Mário Moura chama grosseiramente «protodesigners»!, p. 151), cujo trabalho final para a Fundação Gulbenkian ele pôde acompanhar de perto. Sebastião havia sido nas décadas 1960-70 um caso raro de maestria oficinal, cuja fecundidade é ainda hoje digna da maior admiração e espanto. Brandão não pode ser considerado herdeiro directo e exclusivo de Rodrigues — nem creio que se avalie como tal —, mas recebeu dele em primeira mão lições fulgurantes, que o tornariam um organizador visual de particular excelência, orquestrando como poucos materiais variados para um efeito erudito. O desdobrável do Museu Gulbenkian «Queda e ascensão da estética clássica», de 1987 (pp. 268-69) podia ser uma obra dos dois, e Alma Africana, de 2009 (pp. 360-61), para o Museu Berardo, também. A ousada lição de Sebastião reaparece ainda, em homenagem, diria eu, na capa de At the Edge: A Portuguese Futurist, Amadeo de Souza-Cardoso (1999), que nos lembra uma capa feita pelo amigo para um livro sobre Almada, identificado apenas por um auto-retrato dele (Acarte, 1985), ou até na sobrecapa sem letras de O Mundo de Ruben A. (1996), e pelas mesmas razões.
Numa dúzia de depoimentos que polvilham o livro, vários e significativos clientes de José Brandão e do seu ateliê B2 destacam o profissionalismo e o rigor do seu trabalho, e Natália Correia Guedes conta que o designer lhe fora recomendado por Salette Tavares como «verdadeira promessa». E acrescenta: «Quatro décadas confirmaram a profecia da poetisa [e sogra de JB]. Concilia, como raramente vemos em artistas, a minúcia e o perfeccionismo com o cumprimento rigoroso de prazos. Alia uma sólida cultura humanista a uma criatividade artística de excepção. […] Com esta exigência global, obtida com muita diplomacia e não menor humor “britânico”, atinge uma qualidade rara» (p. 147). Nesse aspecto, o desenhador que Brandão inicialmente foi pôde, enfim, reencontrar-se em absoluto em duas obras de terceira linha só aparente, a nova edição de História dos Animais e Árvores do Maranhão de Frei Cristóvão de Lisboa (2000; v. pp. 320-25) e Isumavut. A expressão artística de nove mulheres de Cape Dorset (2001; v. pp. 114-15).
Além do trabalho para a Comissão dos Descobrimentos e para a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, merece especial atenção o realizado para os Correios de Portugal. A altíssima qualidade das edições dos Correios, geralmente eclipsada pela «crítica de imprensa», deve-lhe também muito. Algumas séries de selos como «A herança romana em Portugal» (2006) «Herança das Américas» (2007), «A herança africana em Portugal» (2009), «Fundação Calouste Gulbenkian 50 anos» (2006) e «Bicentenário do nascimento de Darwin» (2009), entre outras, valeram-lhe dois grandes prémios de filatelia europeia.
Um livro histórico, portanto, para colocar na estante ao lado dos dedicados a Sebastião Rodrigues e Daciano Costa (nos quais José Brandão teve papel preponderante) ou a Sena da Silva, e dos pequenos volumes da colecção D e da série Design Português, agora em curso de publicação.