Estamos em plena Semana Santa, na qual toda a Igreja Católica celebra os culminantes acontecimentos da vida de Jesus e que, por isso, constituem o principal fundamento da fé católica. No seu conjunto, esses acontecimentos tomam o nome de mistério pascal: mistério, porque a sua compreensão mais profunda e inesgotável está dependente da Revelação divina; e pascal, porque são acontecimentos intimamente relacionados com a ancestral Páscoa judaica, ela mesma figura daquela consumada uma vez por todas por Cristo.

Mas que acontecimentos são esses que a Igreja no seu conjunto e cada um dos fiéis celebram e revivem nesta semana, também qualificada como maior? O núcleo fundamental é constituído pela Paixão, a Morte e a Ressurreição de Jesus Cristo e decorre entre quinta-feira à noite e a madrugada de domingo. Paixão, porque Cristo, o Filho Unigénito de Deus Incarnado, voluntariamente sujeitou a sua humanidade a sofrimentos indizíveis, por amor de nós, e que o levaram ao suplício infamante da Morte por crucifixão, infligida pela autoridade romana, pressionada por uma multidão manipulada e exaltada. Ressurreição, porque o seu cadáver incorruptível, já sepultado, ao terceiro dia retomou a vida, de um modo absolutamente inédito, num “acontecimento [simultaneamente] histórico e transcendente” (Catecismo da Igreja Católica, nn. 639-647).

Historicamente, antecedeu o início da Paixão a Última Ceia (também designada Ceia do Senhor), na quinta-feira, durante a qual Jesus instituiu a Eucaristia, como memorial perpétuo da sua morte sacrificial. E ao mandar aos Apóstolos que a fizessem doravante em sua memória (cf. Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24), também instituiu o novo Sacerdócio – novo relativamente ao do Antigo Testamento (cf. Concílio de Trento, Doutrina e Cânones sobre o Sacrifício da Missa: Cap. 1 e Cânone 2; DZ 1740, 1752; Catecismo, nn. 611, 1337).

A propósito da instituição do sacramento da Ordem, merece leitura atenta a nova versão do artigo “Il Sacerdozio Cattolico” (“O Sacerdócio Católico”), publicado no livro póstumo de Bento XVI, intitulado Che Cos’È Il Cristianesimo (O que é o Cristianismo; pp. 96-122). Neste artigo o Papa Emérito aprofunda e esclarece o modo como o sacerdócio católico se diferencia e relaciona com o antigo sacerdócio judaico e por esta via explica o que diferencia substancialmente a celebração luterana da Última Ceia da celebração católica do Santo Sacrifício da Missa.

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É pelo mistério pascal de Cristo, portanto, que obtemos aquilo que a doutrina designa a salvação e a redenção. Este duplo efeito da obra de Cristo, constituindo uma unidade em si, todavia comporta dois significados complementares: o significado de salvação, não está longe do sentido da palavra saúde, ou seja, o total bem-estar pessoal, envolvendo a realização gozosa do fim último para que existimos, o cumprimento total de si mesmo. Mas, como afirma um teólogo que muito admiro pela clareza e assertividade (Mauro Gagliardi), “isto só pode acontecer quando alcançarmos a nossa finalidade sobrenatural em Deus” no paraíso, ou seja, na vida além da morte. Neste mundo, como todos temos a experiência, a felicidade tem as suas vulnerabilidades. Pela morte de Cristo na Cruz, “Ele dá-nos a graça que nos permite, se com ela cooperamos, ser elevados e levados à nossa plena realização no Céu”. A redenção, sublinha o efeito de resgatar, pagar o resgate por alguém que foi vendido como escravo ou a caução de quem está aprisionado ou detido por um crime ou fundada suspeita. E como resume o mesmo teólogo, “a obra da redenção é a obra pela qual Cristo paga o resgate por nós, resgatando-nos do pecado, da morte e de Satanás”.

Com efeito, São Paulo afirma na sua primeira Carta aos Coríntios: “Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate” (6, 20). Quanto aos pecados (ver Catecismo da Igreja Católica, nn. 1849-1851) de que Cristo nos redimiu – dos quais muito pouco se fala neste tempos pós-modernos, ainda que cada vez mais evidentes se manifestem os seus efeitos nas pessoas, na sociedade e pelo mundo – resultam da orgulhosa recusa de Deus Criador, da insubordinação da criatura em relação ao Criador, da recusa em escutá-Lo, da competição com Ele, de uma distorcida imagem d’Ele e da Sua boa vontade, da ignorância culposa a Seu respeito, do juízo erróneo sobre a Sua verdadeira essência, e de tantos outros factores da nossa natureza decaída e enfraquecida.

Poderá perguntar-se: como é que um homem sozinho, Cristo sozinho, pôde ser causa da salvação de todos aqueles que estão abertos a essa mesma salvação e a aceitam? Ou seja, como é que Jesus é causa universal de salvação? Porque razão fundamental é que toda a sua vida de entrega tem um valor universal, objectivo e não apenas moral, exemplar? O motivo substancial dessa valia, dessa super-valia, e que devemos proclamar de novo, hoje, em alta voz e sem qualquer falso respeito humano, é o facto de que a Pessoa deste homem absolutamente único, ser Deus, ser um da Trindade divina: o Filho Unigénito de Deus; a Palavra, o Verbo (Logos) na expressão do evangelista São João (cf. Jo 1, 1).

A resposta pessoal que cada um de nós, crentes, deve dar à pergunta que aliás o próprio Jesus fez aos seus discípulos – “E vós quem dizeis que eu sou?” (Mt 16, 15 e paralelos) – é aquela mesma dada por Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16, 16). Disso devemos estar recordados e convictos ao adorá-Lo na Cruz, na celebração de Sexta-feira Santa, e todas as inúmeras vezes que nos deparamos com um crucifixo, pois de outro modo não faria qualquer sentido; seria um gesto patético. De facto, devemos rezar com a Igreja: “Nós vos adoramos e bendizemos Senhor Jesus Cristo. Que pela vossa santa Cruz redimistes o mundo”.

Com efeito, diz o Catecismo no trecho seguinte (n. 468):

Depois do Concílio de Calcedónia, alguns fizeram da natureza humana de Cristo uma espécie de sujeito pessoal. Contra eles, o quinto Concílio ecuménico, reunido em Constantinopla em 553, confessou a propósito de Cristo: «não há n’Ele senão uma só hipóstase (ou pessoa), que é nosso Senhor Jesus Cristo, um da santa Trindade» (DS 424). Tudo na humanidade de Cristo deve, portanto, ser atribuído à sua pessoa divina como seu sujeito próprio (DS 255); não só os milagres, mas também os sofrimentos (DS 423) e a própria morte: «Aquele que foi crucificado na carne, nosso Senhor Jesus Cristo, é verdadeiro Deus, Senhor da glória e um da Santíssima Trindade» (DS 432)”.

E mesmo a própria eficácia universal da morte redentora de Jesus é absolutamente dependente da sua condição divina, conforme atesta o Catecismo (n. 616):

É o «amor até ao fim» (Jo 13, 1) que confere ao sacrifício de Cristo o valor de redenção e reparação, de expiação e satisfação. Ele conheceu-nos e amou-nos a todos no oferecimento da sua vida (Gl 2, 20; Ef 5, 2.25). «O amor de Cristo nos pressiona, ao pensarmos que um só morreu por todos e que todos, portanto, morreram» (2 Cor 5, 14). Nenhum homem, ainda que fosse o mais santo, estava em condições de tomar sobre si os pecados de todos os homens e de se oferecer em sacrifício por todos. A existência, em Cristo, da pessoa divina do Filho, que ultrapassa e ao mesmo tempo abrange todas as pessoas humanas e O constitui cabeça de toda a humanidade, é que torna possível o seu sacrifício redentor por todos”.

A humanidade que há em Jesus Cristo, é assim como que um instrumento conjunto com a sua divindade. Os cristãos acreditam que Ele, sendo homem, é também Deus. Tem duas naturezas: a divina e a humana. É, pois, um caso absolutamente particular e único na História. Não querendo complicar com explicações teológicas, mas porque eu creio que os leitores merecem o melhor, transcrevo esta assombrosa passagem do tratado de teologia de Mauro Gagliardi (Nota abaixo), onde nos deparamos com este aparente paradoxo, que assenta na verdade de fé, de que em Cristo há uma só Pessoa em duas naturezas:

A doutrina da Igreja concernente a Cristo e à sua constituição ontológica, vê n’Ele o caso único de um verdadeiro ser humano, ou de um indivíduo de natureza humana como a nossa, que não é, apesar de tudo, uma pessoa humana, pois, no caso único e irrepetível deste homem, o carácter de pessoa […] é fornecido pela Pessoa divina do Verbo. No contexto teológico actual, é necessário repeti-lo: Jesus é verdadeiro homem, mas não é uma pessoa humana. Contudo, Jesus é uma Pessoa: é o Verbo incarnado. […]. Por isso, Cristo é, além do mais, o único e perfeito mediador entre Deus e os seres humanos, porque não pode haver mediação superior do que aquela que o próprio Deus desempenha com a humanidade que Ele assumiu na Pessoa do Verbo” (pp. 280-281).

E como diz admiravelmente Gagliardi mais à frente, “a Incarnação é um ponto de não-retorno: o Verbo, tornando-se carne, decidiu tornar-se homem para sempre, não meramente por um período de tempo – mesmo que muito longo. Para toda a eternidade o Verbo permanecerá no estado indissolúvel da Incarnação”. Assim, no seu estado actual de ressuscitado, de redivivo na sua glória junto do Pai, temos em Cristo Jesus, continuamos a ter para todo o sempre, o melhor intercessor junto de Deus Pai e o melhor juiz que se possa imaginar.

Pode colocar-se ainda a seguinte questão: e se Adão não tivesse pecado pessoalmente e/ou a sua descendência não tivesse posteriormente pecado também pessoalmente, o Filho de Deus teria assumido mesmo assim a humanidade, isto é, teria alguma vez incarnado? Mauro Gagliardi discute no referido tratado, com grande maestria, esta antiga questão, tendendo para a opinião “mais consistente” de São Tomás de Aquino, que segue os Padres da Igreja, de que se a humanidade não tivesse pecado, o Verbo não teria encarnado, pois esta teve como finalidade principal a redenção dos pecadores, a reparação do pecado, a recuperação da dignidade do homem e a devolução de ordem aos cosmos (cf. pp. 115-125).

E também há quem se pergunte, se Deus não teria podido salvar-nos de outro modo, não cruento, sem implicar qualquer sofrimento? Como “para Deus, com efeito, nada é impossível” (Lc 1, 37), é razoável pensar que sim, podia, mas de facto não aconteceu assim. Tal como diz o meu Autor, “na Revelação, não há discursos acerca de what would have happened [if], mas antes sobre what happened” (p. 125). Dito de outro modo, uma teologia puramente especulativa que tenha início num se, não é verdadeira teologia, pois não parte sistematicamente do acontecimento acreditado.

A rotura entre a humanidade e Deus, devida ao abuso da liberdade com que nos dotou ao criar-nos e à sedução do Maligno, de quem nos tornámos escravos pelo pecado, foi superada pelo próprio Cristo. Pelo seu sacrifício, fomos reconciliados com Deus. Portanto, a cura que nos devolve a possibilidade de salvação – assim queiramos cooperar nela! – foi Jesus que a ofereceu; e o resgate da escravidão do mal moral foi Ele que o pagou com o seu sangue, ou seja, com a entrega da sua vida. A pena que nos era merecida pelos nossos pecados, ou seja, a morte física e eterna, foi Ele que a expiou em vez de nós, por sua libérrima vontade e amor gratuito. Não foi uma imposição vingativa de Deus Pai. Nem se tratou de um pecador megalomaníaco que se ofereceu generosamente para substituir a multitude dos outros pecadores merecedores da pena reparadora. Não. Foi antes O inocente por excelência, sem qualquer vislumbre de pecado, o único ser humano-divino sem qualquer necessidade de redenção, que se ofereceu num gesto de amor gratuito para carregar com o peso dos nossos pecados, num gesto de divina magnanimidade onde a justiça se uniu ao amor. Mais e maior amor não é concebível!

Porque era Deus, e só porque era Deus, “o sacrifício de Jesus tem um valor reparador (ou expiatório) e propiciatório: purifica os pecadores e torna-lhes Deus propício”. Valor esse que é universal, como se viu, oferecido a todo e qualquer ser humano e cujos efeitos são aplicáveis às pessoas de todas as épocas, passadas, no presente e no futuro Por isso acreditamos que a vitória final sobre o mal, assim como a libertação derradeira, já estão asseguradas, irreversivelmente, embora para aqueles que cooperam com Cristo ainda decorram batalhas e provações neste mundo. Pois ainda se fazem sentir os “Dominadores deste mundo das trevas” (cf. Ef, 6, 12); e o trigo ainda cresça junto com o joio (cf. Mt 13, 24-30) assim como “o que é bom” e “o que não presta” ainda coexistam na mesma “rede lançada ao mar” (cf. Mt 13, 47-49).

Nesta semana maior do ano litúrgico, é salutar recordar de modo especial estas verdades de fé, e tanto mais nestes tempos em que a Igreja em Portugal está a sofrer uma crise especialmente dura, quer nas vítimas sobreviventes de abusos sexuais; quer na clamorosa e injusta suspeita malevolamente deixada cair sobre a generalidade indiferenciada dos padres; quer no remorso sincero dos responsáveis que não actuaram a tempo como deviam; quer pela perda de credibilidade da Igreja enquanto instituição fundada por Cristo; quer na pureza da fé das pessoas mais simples. Há que retornar à pregação da sã doutrina; ‘perder tempo’ a explicá-la de novo às pessoas; acreditar que são capazes de crescer sempre mais na relação pessoal com Cristo; de se abrirem ao seu Espírito e à Verdade que liberta. Fomos criados para isso. E disso estamos todos carentes.

Que a fé em Cristo ressuscitado, que nos prometeu “eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos!” (Mt 28, 20), nos amplie a esperança e nos alente a alegria nesta difícil hora da vida da Igreja universal! Santa Páscoa! Cristo vive!

Nota – Mauro Gagliardi, c/ Introdução do Cardeal Gerhard L. Müller, Truth Is A Synthesis, Catholic Dogmatic Theology (A Verdade é Uma Síntese. Teologia Dogmática Católica). Tradução em inglês, do original em italiano, publicada em finais de 2020. Emmaus Academic, Steubenville, Ohio.