1 Concluo esta já longa recensão pessoal de algumas das obras magistrais de Ratzinger, com a sua trilogia sobre Jesus de Nazaré, publicada em 2007, 2011 e 2012, com a tradução portuguesa editada pel’ A Esfera dos Livros (o primeiro volume) e a Princípia (os dois seguintes), sob a inseparável dupla assinatura de Joseph Ratzinger Bento XVI. É um autêntico testamento espiritual sobre o fundador e único Chefe da Igreja, de quem Pedro e os seus legítimos sucessores permanecem os Vigários na terra. É um testemunho escrito, «após um longo caminho interior» (sic), sobre Aquele que é a razão de ser fundamental de toda a sua vida de eminente teólogo e perseverante pastor, que sempre foi desde a cátedra académica até à Cátedra de Pedro.

O método interpretativo que usa é o da chamada «exegese canónica», que se baseia numa leitura dos livros que compõem a Bíblia, numa perspectiva que tem em conta a sua totalidade, a coerência interpretativa do seu conjunto e também o que foi dizendo ao longo do tempo o «seu sujeito comum povo de Deus […], verdadeiro e mais profundo autor das Escrituras». Naturalmente que, enquanto honesto e habilitado estudioso, o Papa Ratzinger não deixa de ter seriamente na devida conta o moderno método histórico-crítico, mas, escreve ele no Prefácio ao volume publicado em primeiro lugar, «eu, indo mais além da simples interpretação histórico-crítica, procurei apenas aplicar os novos critérios metodológicos que nos permitem uma interpretação da Bíblia propriamente teológica, a qual, no entanto exige a fé, sem por isso querer nem poder de forma alguma renunciar à seriedade histórica» (cf. Jesus de Nazaré, A Esfera dos Livros, 2007, pp. 20-25).

Como não ter presente, por exemplo, a colossal força interpeladora destas suas palavras a respeito dos dois mais profundos e desafiantes mistérios da vida de Jesus, verdadeiros testes da fé cristã e católica, de uma inaudita actualidade:

«Na história de Jesus há dois pontos nos quais o agir de Deus intervém directamente no mundo material: o seu nascimento da Virgem e a ressurreição do sepulcro, donde Jesus saiu e não sofreu a corrupção. Estes dois pontos são um escândalo para o espírito moderno. A Deus é concedido agir sobre as ideias e os pensamentos, na esfera espiritual, mas não sobre a matéria. Isto perturba: não é ali o seu lugar. Mas é precisamente disso que se trata: de que Deus é Deus, e não Se move apenas no mundo das ideias. Neste sentido, em ambos os pontos, trata-se precisamente de Deus ser Deus. Está em jogo a questão: também lhe pertence a matéria? Naturalmente, não se pode atribuir a Deus coisas insensatas, ou não razoáveis, ou que estejam em contraste com a sua criação. Ora, aqui não se trata de algo não razoável ou contraditório, mas precisamente de algo positivo: do poder criador de Deus, que abraça todo o ser. Por isso, estes dois pontos – o parto virginal e a ressurreição real do túmulo – são verdadeiro critério da fé. Se Deus não tem poder também sobre a matéria, então Ele não é Deus.» (Jesus de Nazaré – A Infância de Jesus, Princípia, 2012, p. 51).

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E ainda estas outras, espantosas e tanto quanto sei inéditas na forma como tenta compreender a «natureza peculiar da ressurreição de Cristo» – sem a qual, obviamente, «é vã» tanto a pregação como sobretudo a própria fé cristã (cf. 1Cor 15, 14):

«A ressurreição é um acontecimento dentro da história, que, todavia, rompe o âmbito da história e a ultrapassa. Podemos talvez servir-nos de uma linguagem analógica, que permanece sob muitos aspectos inapropriada, mas pode abrir um acesso à compreensão. […] Podemos considerar a ressurreição uma espécie de salto qualitativo radical em que se entreabre uma nova dimensão da vida, do ser homem. Sem dúvida, a própria matéria é transformada num novo género de realidade. Agora, o Homem Jesus, precisamente com o seu próprio corpo, pertence totalmente à esfera do divino, do eterno. […]. Embora o homem, segundo a sua natureza, seja criado para a imortalidade, só agora existe o lugar onde a sua alma imortal encontra o espaço, aquela corporeidade na qual a imortalidade recebe sentido como comunhão com Deus e com toda a humanidade reconciliada. […]. Dado que nós mesmos não possuímos qualquer experiência de um tal género renovado e transformado de materialidade e de vida, não devemos admirar-nos com o facto de isso ultrapassar aquilo que podemos imaginar. Essencial é o dado de que, com a ressurreição de Jesus, não foi revitalizado um indivíduo qualquer, morto num determinado momento, mas se verificou um salto ontológico que toca o ser enquanto tal, foi inaugurada uma dimensão que nos interessa a todos e que criou, para todos nós, um novo âmbito da vida: o estar com Deus» (Jesus de Nazaré – Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição, Princípia, 2011, pp. 222-223).

Ratzinger / Bento XVI, com esta sua obra de síntese sobre Jesus deseja sobretudo e de modo positivo «favorecer no leitor o crescimento de uma relação viva com Ele». No que me diz respeito, posso afirmar que muito me tem ajudado: de facto, gosto de lá ir revisitá-Lo, particularmente no tempo da Quaresma e da Páscoa. O cardeal Müller no Prefácio do volume da Opera Omnia que contém os três livros sobre Jesus de Nazaré, observa o seguinte sobre o Autor: «Ele opõe-se fortemente a uma era mergulhada no cepticismo, que não acredita que Deus se tenha manifestado definitivamente em seu Filho».

De facto, dos múltiplos objectos permanentes da sua desvelada atenção e preocupação ao longo da sua vida sacerdotal, académica, episcopal e depois em Roma, ocorre-me destacar os seguintes: a identidade das fontes da Revelação divina, a pureza e integridade da fé, a especificidade única da Igreja Católica, a comunhão eclesial, a renovação da evangelização, a compreensão da Liturgia e a arte de a celebrar bem, a defesa das capacidades da razão sem limitar o seu âmbito de aplicação às ciências chamadas positivas ou experimentais, a denúncia do relativismo filosófico, a confiança na possibilidade da verdade universal, o fundamento natural da moral, os critérios fundamentais da teologia propriamente católica, a relação da política com a religião e dos Estados com a Igreja, a crise do Ocidente, e as raízes e identidade da Europa.

2 Quanto à renúncia concretizada dia 28 de Fevereiro de 20013 só a história futura poderá revelar e analisar cabalmente os motivos e circunstâncias, para além dos avançados pelo próprio Bento XVI na sua declaratio do dia 11 daquele mês. Ao despedir-se dos cardeais presentes em Roma, e reportando-se àquele que, obviamente, ninguém sabia ainda qual seria o próximo sucessor na Cátedra de Pedro, adianta-lhe a sua subordinação hierárquica, afirmando: «já hoje prometo[-lhe] a minha reverência e obediência incondicionadas» (Sessão de Despedida, 28 de Fevereiro de 2013). Obediência essa, que foi depois e por mais de uma vez, publicamente reiterada ao eleito Papa Francisco. Também aqui, revelava admiravelmente a sua inabalável confiança em Quem verdadeiramente conduz a barca da Igreja como «seu Pastor Supremo, Nosso Senhor Jesus Cristo» (cf. Bento XVI, Declaratio, 11 de Fevereiro de 2013).

3 Finalmente, das suas intervenções públicas após a renúncia, há duas que, penso, merecem ainda realce quer pela ocasião crítica em que tiveram lugar quer pelo temas cruciais abordados. Aqui, apenas posso mencioná-las. A primeira, é o ensaio que escreveu por ocasião da reunião dos Presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo no Vaticano, em Fevereiro de 2019, para debaterem «A Protecção dos Menores na Igreja» – embora o Papa Emérito tenha preferido dizer que foi «para discutir a corrente crise de fé e da Igreja» (sic). O longo ensaio, publicado poucos meses depois, intitula-se A Igreja e o escândalo do abuso sexual, foi já objecto de uma crónica minha no Observador (14 de Abril de 2019: https://observador.pt/opiniao/uma-nova-carta-enciclica-de-bento-xvi/ ). Divide o seu escrito em três partes: a primeira sobre o contexto social do problema, mencionando alguns traços da revolução decorrida nos célebres anos 60 do século XX; na segunda, analisa sobretudo o impacto dessa revolução nos seminários e na vida dos padres e bispos; e na terceira parte, espiritualmente a mais profunda, desenvolve algumas pistas para uma adequada resposta da Igreja ao problema.

A segunda dessas intervenções, é o texto que constitui a primeira parte (I) do livro publicado em conjunto com o cardeal Robert Sarah, ainda então Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, com o título de capa Des profondeurs de nos coeurs (Fayard, Janeiro de 2020). A ocasião, foi a do Sínodo Especial dos Bispos sobre a Amazónia, ocorrido no final de Outubro de 2019, onde, entre outros temas, se debateu o celibato dos padres, designadamente a eventual ordenação de homens «idóneos e reconhecidos pela comunidade» mesmo casados; e a espectativa sobre o que o Papa decidiria na Exortação Apostólica Pós Sinodal, que foi depois publicada no início de Fevereiro de 2020. Este ensaio de 42 páginas do Papa Emérito, leva o título Le sacerdoce catholique. É um trabalho de reflexão teológica que Bento XVI tinha já começado muito antes do referido Sínodo, já que, como ele escreve, «face à crise durável que atravessa o sacerdócio desde há muitos anos, pareceu-me necessário voltar a ir às raízes profundas do problema» (p. 29). Logo no terceiro parágrafo introdutório antecipa a grande conclusão da sua investigação exegética a este respeito: «O acto de culto passa […] por uma oferta da totalidade da sua vida, no amor. O sacerdócio de Jesus Cristo faz-nos entrar numa vida que consiste em tornar-se um com Ele e em renunciar a tudo aquilo que não pertence senão a nós mesmos. Tal é o fundamento, para os padres, da necessidade do celibato, mas também da oração litúrgica, da mediação da Palavra de Deus e da renúncia aos bens materiais» (p. 30; tradução minha).

4Se com a morte de João Paulo II, em 2005, senti como que a morte de um pai-espiritual com que Deus me agraciou por longos anos, com a de Joseph Ratzinger sinto agora como se me tivesse morrido um avô muito sábio, cujo conselho não dispensamos nas horas e decisões mais difíceis da vida. Fica-nos o seu testemunho de inabalável confiança nas capacidades do homem definitivamente libertado por Cristo e o colossal acervo dos seus diversos escritos, quer pessoais quer do seu Magistério.

E se, na minha humilde opinião, já escrevi aqui no Observador que João Paulo II merece o cognome de Magno, sobre Bento XVI ouso escrever agora que lhe assentaria muito bem o raro título de Doutor da Igreja (seria o 38º reconhecido como tal, na longa história da Igreja Universal).

Requiescat in pace !