1 No contexto celebrativo e alegre do Grande Jubileu do Ano 2000, a 13 de Maio, em Fátima, depois da Missa de beatificação dos videntes Jacinta e Francisco Marto, presidida pelo Papa João Paulo II, é inesperadamente revelado o chamado Terceiro Segredo de Fátima. No mês seguinte, no Vaticano, publicava-se um extenso documento onde, entre fac-simile dos escritos da Irmã Lúcia em que ela relata o segredo, consta o Comentário Teológico do cardeal Ratzinger, onde ele explica a relação das revelações privadas com a Revelação pública e, numa interessantíssima exposição, em que consiste o seu «carácter antropológico (psicológico)», finalizando com «Uma tentativa de interpretação do segredo de Fátima» (sic). Nesta «tentativa», Ratzinger revela toda a sua capacidade de exímio teólogo, enquadrando o estilo próprio da redacção da Mensagem na Sagrada Escritura, explicando com noções da espiritualidade bíblica as expressões comunicadas pela Irmã Lúcia, decifrando as imagens simbólicas de toda a cena descrita no segredo, e revelando a substância profética e o que dela releva como apelo urgente dirigido a todos nós.

2 Também em pleno Grande Jubileu, a 6 de Agosto, era publicada a densa Declaração Dominus Iesus, sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, na qual a activa contribuição de Ratzinger – seu subscritor, enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – é notória, notando-se aí o seu incondicional amor à Verdade católica, ou seja, a Cristo e à Igreja. A oportunidade e o motivo é-nos referido logo na Introdução, revelando já neste documento aquilo que posteriormente se manteve uma constante preocupação de Ratzinger ao longo de todo o seu próprio pontificado:

«O perene anúncio missionário da Igreja é hoje posto em causa por teorias de índole relativista, que pretendem justificar o pluralismo religioso, não apenas de facto, mas também de iure(ou de princípio). Daí que se considerem superadas, por exemplo, verdades como o carácter definitivo e completo da revelação de Jesus Cristo, a natureza da fé cristã em relação com a crença nas outras religiões, o carácter inspirado dos livros da Sagrada Escritura, a unidade pessoal entre o Verbo eterno e Jesus de Nazaré, a unidade da economia do Verbo Encarnado e do Espírito Santo, a unicidade e universalidade salvífica do mistério de Jesus Cristo, a mediação salvífica universal da Igreja, a não separação, embora com distinção, do Reino de Deus, Reino de Cristo e Igreja, a subsistência na Igreja Católica da única Igreja de Cristo» (n. 4).

Logo depois explicitam-se alguns dos fundamentos de ordem filosófica e teológica que explicam, hoje de modo ainda mais evidentes, estas posições. Subscrita pelo cardeal Ratzinger – e que João Paulo II «com ciência certa e com a sua autoridade apostólica ratificou e confirmou» – a Declaração entendeu necessário reafirmar com límpida clareza, no auge do Grande Jubileu dos 2000 anos da encarnação do Verbo (a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade), o seguinte:

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«Perante certas propostas problemáticas ou mesmo erróneas, a reflexão teológica é chamada a reconfirmar a fé da Igreja e a dar razão da sua esperança de forma convincente e eficaz. Os Padres do Concílio Vaticano II, debruçando-se sobre o tema da verdadeira religião, afirmaram: “Acreditamos que esta única verdadeira religião se verifica na Igreja Católica e Apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou a missão de a difundir a todos os homens, dizendo aos Apóstolos: ‘Ide, pois, fazer discípulos de todas as nações, baptizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinai-lhes a cumprir tudo quanto vos mandei’ (Mt 28,19-20). Por sua vez, todos os homens estão obrigados a procurar a verdade, sobretudo no que se refere a Deus e à sua Igreja, e a abraçá-la e pô-la em prática, uma vez conhecida”» (Conclusão, n. 23).

Ainda no rescaldo do Grande Jubileu, em 2002, rebentava o hediondo escândalo dos abusos sexuais por parte do clero, inicialmente denunciado pelo jornal The Boston Globe. As obras biográficas elencadas na I Parte desta série de crónicas, demonstram como o cardeal Ratzinger já enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e depois como Papa enfrentou e combateu em diversas frentes este flagelo (cf. Nota, no final).

3 Ao longo dos sete anos seguintes, publica as suas Encíclicas: três, sobre cada uma das virtudes teologais e uma de índole social. São notáveis não só pela importância fundamental dos temas, mas também pela profundidade e a sabedoria (no melhor sentido bíblico), a peculiar abordagem e a clareza da linguagem. A primeira, sobre a virtude maior da Caridade, Deus caritas est, de Dezembro de 2005, trata da concepção cristã do amor, não sem antes se debruçar sobre as noções filosóficas e históricas desta afeição humana; a segunda, Spe salvi, de Novembro de 2007, ocupa-se da esperança propriamente cristã e das realidades da vida do Além (Juízo, Purgatório, Céu e Inferno); e a terceira, Caritas in veritate, de Junho de 2009, constitui a sua Encíclica social, surgida no rescaldo da grave crise financeira de 2007-2008 e nos quarenta anos da célebre Populorum progressio de PauloVI, a quem Bento XVI quis prestar assim uma homenagem «retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral e colocando [-se] na senda pelos mesmos traçada, para os actualizar nos dias que correm» (n. 8). A Encíclica sobre a fé, Lumen fidei, por ele escrita – mas só publicada por Francisco, com uns acrescentos, em Junho de 2013 – trata da luz que a fé cristã traz ao nosso caminho neste mundo, da sua relação com a verdade e com a razão, temas desde sempre muito caros a Ratzinger. De todas estas quatro, a que confessou a Seewald ser «talvez» a sua «preferida», «a que mais gosta» (sic), é a primeira, Deus caritas est (cf. Seewald, 2016, p. 236).

4 Não posso deixar de evocar neste longo elenco, ainda que muito apressadamente, algumas das suas alocuções mais significativas. Para nós portugueses, as homilias proferidas durante as Missas em Lisboa e Fátima, em Maio de 2010, no décimo aniversário da beatificação dos Pastorinhos Jacinta e Francisco. E dois anos depois, do lado de lá do Atlântico, na Cuba de Fidel, aquela homilia da Missa em plena Praça da Revolução, em Havana, em Março de 2012. Na presença do Presidente Raúl Castro, e sob os aplausos da multidão, não deixou de anunciar em que consiste a verdadeira libertação do homem. Quanto a alguns dos seus mais notáveis discursos, destaco os seguintes:

  1. Na “sua” Universidade de Ratisbona, em Setembro de 2006, apresenta uma empolgante lição em defesa da história e da importância actual da mútua relação entre a fé, particularmente a fé cristã e a razão. Deixo de parte, a polémica pública que se seguiu a respeito da referência que Bento XVI fez a um célebre diálogo havido na última década do século XIV entre o imperador bizantino Manuel II e um erudito persa, em que as duas personalidades discutiram sobre a verdade das respectivas religiões. Para Bento XVI, essa história foi apenas um ponto de partida para iniciar a sua exposição sobre a razoabilidade da fé, e o quão relevante é a noção divina do Logos, da Palavra, da Razão, pois não agir segundo a razão é contrário à natureza do Deus bíblico, pelo que a fé não pode ser imposta violentamente. Disse o Papa: «Nesta argumentação contra a conversão através da violência, a afirmação decisiva está aqui: não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. […] Para o imperador, como bizantino que cresceu na filosofia grega, esta afirmação é evidente; mas não o é para a doutrina muçulmana, porque Deus é absolutamente transcendente. [Para o Islamismo] a Sua vontade não está vinculada a nenhuma das nossas categorias, incluindo a da razoabilidade» (itálico meu).
  2. Na ONU, em Abril de 2008, debruça-se sobre um princípio internacional então algo novo, o da responsabilidade de proteger e centra-se nos direitos humanos, cuja Declaração Universal celebrava então 60 anos, reafirmando a sua origem na dignidade do próprio homem, e lembrando que o seu fundamento não resulta de uma simples vontade do legislador, nem que cada um desses direitos se pode separar dos outros, manipulando-o.
  3. Em Paris, dita a cidade luz, a 12 de Setembro de 2008, no Collège des Bernardins, que na actualidade alberga uma instituição que o Cardeal Jean-Marie Lustiger (1926-2007) quisera votada ao «diálogo entre a Sabedoria cristã e as correntes culturais, intelectuais e artísticas da sociedade actual», Bento XVI dirige-se ao mundo da cultura. O tema é o «das origens da teologia ocidental e das raízes da cultura europeia». O quadro em que o Papa desenvolve o tema é o da natureza do monaquismo ocidental, de que foram pioneiros São Bento e os seus discípulos, com a sua Regra de vida suscitada pelo ora et labora. O amor da Palavra, da Bíblia, a importância da sua interpretação em comunidade, o aporte das ciências literárias, a necessidade dos livros, a relevância das bibliotecas, a aplicação da razão sem limites preconcebidos, enfim a valor do Logos, a Razão divina partilhada pela razão humana, como caminho de Deus e para Deus, ao longo da história europeia, não esquecendo a valor do trabalho, são ali magistralmente expostos; não se furtando Bento XVI a uma crítica de certas correntes de pensamento resultantes do positivismo e de uma concepção absolutamente redutora da razão.
  4. Dois anos depois, em Setembro de 2010, surge a oportunidade de se dirigir aos parlamentares da mais antiga democracia europeia. No Westminster Hall, depois de referir o exemplo de São Thomas More (1478-1535) – da «integridade com que ele foi capaz de seguir a sua própria consciência, mesmo à custa de contrariar o seu soberano» – Bento XVI propõe-se desenvolver o tema da «perene problemática da relação entre aquilo que é devido a César e o que é devido a Deus, […] de ponderar brevemente convosco sobre o justo lugar que o credo religioso conserva no processo político». Elogia a moderação, equilíbrio e estabilidade do sistema britânico, para acrescentar: «Ao longo deste processo histórico, a Grã-Bretanha sobressaiu como uma democracia pluralista, que atribui um grande valor à liberdade de expressão, à liberdade de filiação política e ao respeito pelo Estado de direito, com um vigoroso sentido dos direitos e deveres de cada indivíduo, bem como da igualdade de todos os cidadãos diante da lei». E sublinha onde, aqui, o Magistério social da Igreja pode estar de acordo: «A doutrina social católica, embora tenha sido formulada numa linguagem diversificada, tem muito em comum com esta abordagem, se tivermos em consideração a sua solicitude fundamental pela salvaguarda da dignidade de cada pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, e o realce que dá do dever que as autoridades civis têm de promover o bem comum».
  5. Em Setembro de 2011, está a discursar no parlamento federal alemão, no Reichstag de Berlim, perante o Presidente e a Chanceler do seu País natal. Bento XVI avança o tema a desenvolver: «Na base desta minha responsabilidade internacional [enquanto Bispo de Roma], quero propor-vos algumas considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito». Alude ao que aconteceu na Alemanha nazi, nestes termos fortes, quando o Estado se alheia do Direito: «Experimentámos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu espezinhar o direito, de tal modo que o Estado se tornara o instrumento para a destruição do direito: tornara-se um bando de salteadores muito bem organizado, que podia ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício. Servir o direito e combater o domínio da injustiça é e permanece a tarefa fundamental do político». E lança as duas perguntas com que introduz o seu pensamento: «Como reconhecemos o que é justo? Como podemos distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente?». Repete aos alemães o que já de outro modo tinha dito aos britânicos: «Mas é evidente que, nas questões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade, o princípio maioritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação». À primeira daquelas perguntas, responde: «Na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens. Ao contrário doutras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado duma revelação. Mas apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre razão objectiva e subjectiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus». Efectivamente, diz Bento XVI, «foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem colocado da parte da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica, válida para todos, a razão e a natureza na sua correlação». Prossegue com a explicação dos motivos da crise que nas ultimas dezenas de anos levaram à contestação do Direito natural, assente sobretudo na concepção positivista da razão. Tudo isto para concluir que «a cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico» (itálicos meus). O referido tríplice encontro, passados dez anos, será ainda reconhecível?

Alguns anos antes deste discurso no Reichstag, desde 2003/4, tinha decorrido um longo processo negocial para um Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa, a que se seguiram múltiplos referendos de ratificação, e que terminou em 2005 com alguns chumbos de peso. Não tinham faltado fortes resistências dos sectores laicistas a que no Preâmbulo constasse uma explícita menção do cristianismo. De facto, acabou por constar apenas uma vaga referência à herança espiritual da europa: «Inspirando-se no património cultural, religioso e humanista da Europa, de que emanaram os valores universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, bem como a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de Direito», etc.. Como é sabido, tudo terminou em 2007 com adopção do Tratado de Lisboa. Uns anos depois, a conclusão de Bento XVI no discurso perante os mais altos responsáveis políticos em Berlim, veio recordar e reafirmar com a sua reconhecida autoridade a iniludível verdade histórica. (Continua)

Nota – Cf. R. Regoli, 2016: pp. 171-189; E. Guerriero, 2016: pp. 315, 361, 363 e 423-426; Seewald, 2010: pp. 33-38, 39-41, 46-47, 115-116; Seewald, 2016: pp. 227-228, 252-253; Seewald, 2021: ver no Index, «abuse scandals».