Foi o crítico e historiador de cinema David Thomson que definiu de forma mais exacta e sucinta a personalidade cómica de Jerry Lewis, no início da extensa entrada que lhe dedicou no seu “Biographical Dictionary of Film”: “(…) a um mundo incompreensível, sem piedade ou intratável, [Buster] Keaton responde com desdém, Harry Langdon sonha acordado, Stan Laurel desenrasca-se como pode, e enquanto Chaplin põe em prática toda a manha sonsa do criado de mesa que planeia tirar a cadeira ao gordo que se vai sentar, a resposta de Jerry Lewis é tão inovadora como alarmante: ele enlouquece.”

Mas não se deixem enganar pelas caretas pantomineiras, pela voz de sirene, pelo corpo em frenesim, pelo caos que espalha em seu redor. É que há método –  muito, e muito rigoroso – na loucura de Jerry Lewis, o último grande cómico faz-tudo do cinema americano, actor, realizador, argumentista, produtor e cantor. Como vamos poder ver ao longo deste mês e de Julho, no ciclo ‘Jerry Lewis-A Desordem Ordenada’, que a Cinemateca lhe dedica. Este é um dos grandes acontecimentos cinematográficos do ano, que nos permitirá saborear filmes da parceria que Jerry fez com Dean Martin entre 1949 e 1956; filmes com Jerry Lewis assinados por realizadores como Frank Tashlin ou Norman Taurog; os filmes de e com Jerry Lewis, até à sua última realização, “Jerry Tu És Louco”, de 1983; e ainda filmes em que foi dirigido por outros cineastas, caso de Martin Scorsese em “O Rei da Comédia”, ou Emir Kustirica em “Arizona Dream”. O ciclo abre hoje, às 21.30, com “Jerry no Grande Hotel”, a primeira realização de Lewis, em 1960.

https://youtu.be/S6-6W1Qbbfw

“Trailer” de “Jerry no Grande Hotel”

https://youtu.be/Fxm0TN5WDQI

A genialidade visual de Jerry Lewis 

Nascido em Newark em 1926, filho de pais artistas de “vaudeville”, Joseph Levitch tinha uma admiração sem limites pelo seu pai Danny, que se habituou a ver trabalhar no teatro desde muito pequeno e pelo qual se moldou artisticamente. Nos anos 40, formou com Dean Martin uma parceria que se tornou lendária e lhes daria fama e fortuna. Martin cantava., seduzia e era “cool”, Jerry esganiçava-se, desengonçava-se a fazia as partes gagas. Entendiam-se como o ovo e a gema, e os seus espectáculos em bares e hotéis eram em parte escritos por ambos, em parte improvisados no momento. Do palco, Martin e Jerry passaram para a rádio, para a televisão e para o cinema, entrando numa rajada de filmes cómicos entre 1949 e 1956, que os tornaram nos campeões absolutos de bilheteira dos EUA durante esses anos.

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https://youtu.be/BLQybyaWt6s

Dean Martin e Jerry Lewis em acção 

Quebrada a parceria com Martin após “Um Espada para Hollywood” (1956), de Frank Tashlin, Lewis é dirigido por este, um realizador vindo dos “comics” e da animação e grande cultivador do slapstick, em filmes como “Jerry Ama-Seca” ou “Cinderelo dos Pés Grandes”, calibrando e polindo com Tashlin, um espírito afim do seu, a sua persona cómica. Aliás, continuaria a trabalhar com Frank Tashlin mesmo depois de se estrear na realização, em 1960, quando assina com a Paramount um contrato milionário e que lhe dá total liberdade de criação.

https://youtu.be/1MsgHyRGA88

Cena de “Cinderelo dos Pés Grandes” 

O seu primeiro “bebé” é “Jerry no Grande Hotel” (1960), onde quase não fala e que se centra num paquete de um grande hotel de Miami. É neste filme que Jerry Lewis faz história técnica do cinema, ao introduzir o vídeo no set, através da colocação, em pontos estratégicos, de uma série de monitores que lhe permitem seguir-se a si mesmo enquanto representa, controlar aspectos técnicos e as interpretações dos outros actores. Na década de 60, assina algumas das suas obras-primas. É o caso de “As Noites Loucas do Dr. Jerryl” (1963), variante cómico-dramática de “O Médico e o Monstro”, onde se desdobra nos papéis do desastrado, carente e tímido professor Julius Kelp, e do “cool”, engatatão e moralmente repugnante Buddy Love, no qual muitos viram uma sátira arrasadora do seu ex-parceiro Dean Martin, mas que Lewis definiu como “a coporização de várias pessoas que me trataram mal na infância e juventude”.

“Trailer” de “As Noites Loucas do Dr. Jerryl”

É em neste filme, bem como noutros em que tem carta branca, como “O Homem das Mulheres” (1961), “O Mandarete” (1961), “Jerry 8 ¾” (1964) ou “Jerry e os Seis Tios” (1965), onde faz sete personagens diferentes, que Jerry Lewis exibe a sua meticulosidade técnica aliada a uma inventividade visual sem limites; a sua comicidade alicerçada numa incompatibilidade extrema com o mundo físico e numa absoluta falta de sintonia com as pessoas  – e de jeito com as mulheres em especial -, que o faz descontrolar-se e transformar-se num agente involuntário da desordem e da destruição; e o seu apuradíssimo sentido de interacção com os cenários e toda a sorte de objectos. “Sou pago para fazer aquilo por que a maior parte dos miúdos são castigados”, disse numa entrevista.

Cena de “Jerry 8 ¾”

A mudança de estúdio, para a Columbia, em 1966, abre um período criativo menos feliz. Entretanto, Jerry Lewis dá aulas de cinema na Universidade da Califórnia, contando com George Lucas e Steven Spielberg entre os seus alunos, publica um livro imodestamente intitulado “The Total Film-Maker” (1971) e não consegue concretizar um dos seus projectos mais queridos: filmar o livro de culto “Uma Agulha no Palheiro”, de J.D. Salinger.  Em 1980 e 1983, roda os seus últimos filmes como realizador, ambos excelentes: “Vai Trabalhar, Malandro!”, sobre um palhaço que perde o emprego e vai tentar encaixar-se no mundo do trabalho, com consequências catastróficas; e “Jerry Tu És Louco”, uma sequência de “gags” sem rede de argumento, onde interpreta um suicida tão desajeitado que não consegue tirar a própria vida.

https://youtu.be/yH5-lyJOvI8

Cena de “Vai Trabalhar, Malandro!”

Início de “Jerry Tu És Louco” 

Desde aí, tem sido actor em filmes de colegas seus e nalgumas séries de televisão, e dedicado ao seu trabalho filantrópico, com maratonas televisivas anuais para angariar fundos para a investigação e combate da distrofia muscular. Aos 89 anos, e massacrado por um calvário de problemas de saúde, Jerry Lewis é a última lenda cómica viva do cinema americano.  A partir de hoje e até Julho, na Cinemateca, vamo-nos rir da sua loucura todo-terreno, e descobrir todo o método que está por trás dela.

P.S. Se quiser ver toda a programação do ciclo, aqui está o link direto.